Venus e Serena merecem mais do que uma sessão da tarde como “King Richard”

Will Smith faz o patriarca da família Williams em homenagem oficialesca às duas tenistas espetaculares

A história das irmãs Venus e Serena Williams é tão extraordinária que merece qualquer registro possível. Duas garotas saídas do gueto negro em Compton e que, juntas, ganharam 30 torneios de Grand Slam de um dos esportes mais elitistas do mundo – as primeiras negras a chegar ao topo do ranking – três vezes medalha de ouro nas olimpíadas em duplas. Um absurdo.

É como se Pelé (ou Michael Jordan, ou Lewis Hamilton, ou Tiger Woods) tivesse feito tudo que fez e, além de tudo, tivesse um irmão igualmente talentoso no mesmo esporte ao mesmo tempo. Evidente que isso ia acabar em Hollywood, e o resultado é “King Richard: criando campeãs”, que conta a história das duas a partir do ponto de vista do pai, o homem que treinou as meninas desde cedo acreditando que elas poderiam chegar lá.

Sonho americano

Por um lado, é a mais pura expressão do sonho americano. Uma família sem dinheiro, sem contatos, perdida num bairro pobre e violento de Los Angeles e que, por meio de esforço e talento, chega a lugares inimagináveis. Nesse sentido, tem muito a ver com “À procura da felicidade”, outro filme estrelado por Will Smith e igualmente baseado em fatos reais.

Por outro, é uma história dúbia, em que a obsessão do pai pela vitória das meninas nas quadras às vezes chega perto da tirania. Richard Williams (Smith), que trabalhava como segurança à noite, passa os dias treinando Venus (Saniyya Sidney) e Serena (Demi Singleton) – filhas que, segundo ele mesmo diz, concebeu para seguirem um plano de 85 páginas escrito por ele e que terminava com a conquista de Wimbledon.

Deu certo: as duas venceram os torneios mais importantes do planeta, inclusive Wimbledon. Mas o filme mostra o que isso exigiu das duas desde cedo. O pai Williams obriga as meninas a treinar de maneira insana e, em determinado momento, chega a levar as duas para a quadra justamente porque está chovendo. Detalhe: nesse momento, uma delas tem 11 anos e a outra, 10.

Cadê a graça?

O filme foi coproduzido pelas irmãs, e tem aquele ar de biografia oficial que costuma tirar a graça de tantas boas histórias. Em certos momentos, parece que o pai vai ser denunciado como um pequeno ditador – mas não, no momento seguinte ele sai por cima como o homem por trás das conquistas e vitórias de suas filhas.

Uma cena importante para entender o que se passa acontece quando uma vizinha, horrorizada com a exigência de Richard Williams, chama o equivalente americano ao Conselho Tutelar. Pai e filhas estão na quadra, e é a mãe, junto com as irmãs não-tenistas, que está recebendo as autoridades. Mas, em certo momento, Richard chega e pergunta o que está acontecendo.

Quando sabe que está sendo acusado de exigir demais das filhas, faz um discurso dizendo que sim, é duro com elas, mas que isso vai garantir que as meninas nunca convivam com a criminalidade, com as drogas, com as ruas. Numa reação pouco provável, a conselheira que visita a casa se cala, como se percebesse a grandeza daquele pai.

No mínimo, polêmico

A própria escolha de contar a história de duas grandes mulheres a partir do ponto de vista de um homem, que seria o responsável pelo sucesso delas, parece no mínimo polêmica num momento em que o mundo se esforça tanto para demonstrar que as mulheres têm méritos que independem dos homens à sua volta.

Nada disso torna o filme chato. A história das meninas é tão poderosa que sobrevive ao clima chapa-branca. Will Smith e Anjanue Ellis fazem com brilho os pais das garotas. E a atriz que faz a jovem Venus, Saniyya Sidney, é de um carisma impressionante.

No fim, fica a impressão de que Venus e Serena, duas das atletas mais importantes do planeta, talvez merecessem uma homenagem menos oficialesca. Em vez de uma sessão da tarde, mereciam um filme sobre seu talento e seus esforços, que se concentrasse menos em falar do pai e mais da maravilha que elas fizeram por si mesmas e por uma geração de meninas negras ao redor do mundo.

Streaming

“King Richard: criando campeãs” está em cartaz na HBO Max.

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