“Ela dói, mas é necessária”

Para o dramaturgo Arthur Firmino, a montagem de “Não Recomendado” é um desabafo, um manifesto e uma denúncia

O primeiro acorde de violão mal havia terminado de ressoar no hall de entrada do Teatro Lala Schneider, quando os gritos começaram: “Socorro! Socorro! Alguém me ajuda!”. Da escadaria que leva à bilheteria do teatro, o trio de músicos continua a executar a dramática canção. Meu coração acelera. Um jovem magro, trajando roupas coladas, adentra o recinto, correndo entre as pessoas. 

O rosto maquiado simula um espancamento. “Eles vão me matar!”, grita. Começo a puxar o ar pelo nariz, e soltar pela boca – uma tática para domar a ansiedade. Não demora para que três sujeitos de macacões pretos surjam, e passem a agredi-lo. 

“Senhoras e senhores, sintam-se à vontade para filmar a cena”, anuncia uma narradora anônima, perdida em meio à plateia. Os socos e pontapés se misturam às agressões verbais, e às súplicas. Deixo que o corpo da moça morena à minha frente tape quase por completo a ação – não faço questão de vê-la em detalhes.

Quando o corpo do rapaz cai imóvel, a familiaridade da cena vem à tona: uma carriola é usada para carregá-lo. Uma referência explícita ao assassinato de Dandara dos Santos. O crime aconteceu em 2017, no Ceará: depois de ser espancada, Dandara foi morta a tiros. O motivo? Transfobia. 

A performance antecede o início da peça “Não Recomendado”, escrita por Arthur Firmino, ator e fotógrafo de 23 anos, homem trans; e dirigida por Lucas Cardoso, ator e diretor, com recém-feitos 29 anos. O elenco também é jovem: composto por alunos do curso de teatro do próprio Lala. 

A obra é cheia de simbolismos: traz música, coreografia, figurino, dados sobre a violência contra transgêneros no Brasil. Em meio ao panorama, ainda versa sobre aceitação do corpo, depressão, suicídio. “Em algum momento as pessoas se encontram ali nesse texto. Eu fui muito sincero, é muito pessoal”, declara Firmino. Não à toa, já na metade do espetáculo, é possível ouvir resquícios de choro se espalhando pela plateia. 

Não é para ser palatável. “Ela dói, mas é necessária”, salienta o autor, que não queria colocar panos quentes no assunto. “Não Recomendado” é um desabafo, um grito, um manifesto, uma denúncia, mas também um foda-se. É a reafirmação de existências: “Vejo [a peça] como um grito de pedido por amor, por respeito, igualdade, de socorro”, comenta Cardoso.

A apresentação na noite do dia 4 de agosto, domingo, foi – provavelmente – a última das oito que aconteceram de 2018 para cá. “Para a gente é sempre a última”, analisa o diretor. Diante da incerteza, o grupo segue propagando a letra da música de Caio Prado, que dá título à obra: “A placa de censura no meu rosto diz: não recomendado à sociedade. A tarja de conforto no meu corpo diz: não recomendado à sociedade”. 

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