Duas jovens talentosas rompem cena masculina no mundo da arte 3D

Gurias de Curitiba passaram pelas mesmas experiências, enfrentaram machismo e hoje veem a comunidade artística 3D sob outra perspectiva

Garotas de Curitiba entram num universo, até então, restrito aos homens, fazem sucesso, abrem portas para outras mulheres e se apoiam mutuamente. A frase poderia ser formulada para qualquer atividade, mas nesse caso, trata-se de um universo bastante específico: o de artes 3D. Essas gurias sabem muito bem o que estão fazendo, e para onde querem ir.

Anne Calamucci, 23 anos, e Elisa Moraes, 24, têm histórias parecidas. Ambas gostam de desenhar desde pequenas, fizeram cursos na mesma escola, são talentosas e enfrentaram um tipo de machismo comum, mesmo entre jovens: um homem tentando explicar para uma mulher o que ela já sabe.

“Desde muito nova já gostava de desenhar, tanto que aos 5 anos de idade, numa brincadeira, ‘vendi’ meu primeiro desenho para meu avô por 25 centavos. A partir disso, notei que era possivel ganhar dinheiro com arte e comecei a vender desenhos na escola”, conta Anne. Com as economias, ela melhorava os materiais que usava para desenho e aprimorava habilidades. “Sempre quis ser artista”.

Já Elisa diz que sempre teve interesse em artes no geral. “Meus pais sempre incentivaram a criatividade de todo mundo, e minha mãe matriculou meu irmão gêmeo e eu em cursos no Centro de Artes Guido Viaro. Lembro da família sempre fazer passeios por museus, galerias e teatros. Lá em casa, nunca faltou música tocando no toca-discos do meu pai, e muitas noites de cinema”, relata.

Apesar de se sentir “pressionada” porque o único irmão “desenha muito bem”, Elisa diz que o que a afastou das artes foram os estudos no Ensino Médio e o vestibular. “O momento que recuperei minha vontade de produzir arte foi quando ingressei num curso na Escola Revolution”, recorda. Ela passou em Design na UFPR, mas desistiu assim que terminou o primeiro curso na “Revo”, como os alunos chamam a escola.

Aos 16 anos, Anne ingressou no Senai em um curso técnico de desenvolvimento de sistemas. “Eu não era muito boa programando, mas os designs das telas eram sempre bem elaborados. Aos 18 anos entrei para a faculdade de jogos digitais e consegui meu primeiro emprego, como estagiária de arte 3D num estúdio de games em Curitiba. Aprendi muito e desenvolvi grande parte dos conhecimentos fundamentais de 3D para games com meus colegas de trabalho e faculdade”, rememora a artista.

A ascensão foi rápida. Em 2019, foi convidada pelo Senai para participar da competição mundial de profissões técnicas Worldskills, na categoria de Arte 3D para jogos digitais. “Ganhei medalha de ouro na fase paranaense e comecei a receber bolsa-competidor e investimentos do departamento regional do Senai, que custeava todos os cursos que comecei a fazer como parte do meu treinamento para a fase nacional da competição”.

A escola

Foi então que Anne ingressou na Revolution, que fica em Curitiba. A escola é um expoente no ensino brasileiro de artes digitais. Lá, muito networking lhe abriu portas para o mercado nacional e internacional.

“Na Revo, conheci a Elisa, que me incentivou muito. No ano seguinte, com 21 anos, ganhei medalha de ouro na etapa nacional em Aracaju-SE, e me consagrei a melhor do Brasil, garantindo a vaga para representar o país na edição mundial de 2021 em Shanghai na China”, conta a artista. No mesmo ano, participou da edição WorldSkills Américas representando o Brasil, e mais uma vez, conquistou medalha de ouro. Em 2022, ano da competição mundial, por conta da pandemia e da guerra na Ucrânia, o evento foi cancelado.

Elisa fez, entre outros cursos, Escultura Digital na Revolution, onde realmente encontrou seu caminho profissional. “Lá, fiz curso com o Character Artist André Castro, um curso intensivo com o Diretor de Arte da Iron Studios, Igor Catto, outro com a Character Modeler da Walt Disney Animation Studios, Letícia Gillet, e com o Look Dev Artist, Vinicius Tokue”.

Logo a artista ingressou no mercado de trabalho nas áreas de Games, Colecionáveis, Miniaturas e Cinematics. Em menos de 5 anos, possui empresas de renome em seu portfólio. “Com games, trabalhei como freelancer para empresas como Net Ease/Blizzard. Em colecionáveis, trabalhei na Iron Studios, a maior produtora de estátuas da América Latina, e na Cripta Studios, produzindo miniaturas em um modelo de assinaturas mensais para jogadores de RPG”, afirma.

Tendo garantido seu nome como colaboradora em projetos como Diablo Immortal para a Net Ease/Blizzard e também peças colecionáveis de franquias como Star Wars, Harry Potter, Marvel e diversas outras na Iron Studios, agora Elisa faz parte do corpo docente da Unhide School. Ela leciona Character Art para 3D, inspirando jovens que, assim como ela, decidiram tentar uma área nova. Anne, numa nova etapa, foi convidada para trabalhar remotamente na Afterverse, estúdio com sede em Campinas-SP.

“Além disso, já tive a oportunidade de tabalhar em outros titulos (alguns famosos) por meio de empresas brasileiras terceirizadas. Hoje estou em busca de mais oportunidades, visando tanto o mercado nacional que vem crescendo muito, como o mercado internacional. Meu sonho é trabalhar em algum título que eu seja consumidora ativa, jogos como Fortnite, Valorant, The Sims, que tenham gráficos estilizados, que é meu atual foco e especialidade”, diz Anne.

Clubinho

Mas e o clubinho masculino? “Eu sempre tentei estar mais perto das mulheres e apoiar sempre. Já tive problema com machismo, já fui tratada como incapaz por um homem no meu primeiro dia de trabalho. Depois que deixei ele falar bastante, só mostrei meu portfólio com educação e ele nunca mais tentou me diminuir”, diz Anne.

Elisa recorda que na escola, jogava futebol com os meninos, e o passatempo em casa era jogar videogame. “Sempre tive a noção de que eu ‘não pertencia’ aqueles espaços, ouvia comentários sobre minha falta de feminilidade e me acostumei a receber olhares tortos de adultos. Nunca liguei para eles: queria jogar futebol, eu ia jogar futebol, queria jogar videogame, eu ia jogar. Eu me vestia com calças e camisetas largas porque achava mais confortável. Portanto, fui me acostumando a fazer parte desses meios e passei a não me sentir intimidada com explorar atividades que eram reservadas ‘para homens’, sabe?”.

Para ela, há uma percepção na sociedade de que tecnologia e TI são atividades masculinas, e quando se soma essas atividades com videogames, o resultado é ainda mais discrepante. “Estar em uma sala de aula aprendendo sobre Zbrush com outros 20 homens e só com mais uma mulher era uma realidade muito comum. Como eu falei, ter crescido aprendendo a lidar com isso foi um dos motivos que me fez não me sentir intimidada com essas situações, algo que tenho certeza que acontece com muitas mulheres, infelizmente”. 

Por outro lado, as coisas mudaram muito nos últimos anos; conceitos como “coisa de menino” e “coisa de menina” começaram a ser revisados pela sociedade. “A primeira vez que estive em um curso onde a maioria das alunas eram garotas foi, justamente, quando a instrutora era uma mulher. Isso me fez perceber ainda mais como a representatividade é importante. Com certeza muitas meninas vêem na Letícia Gillet, instrutora que hoje trabalha como supervisora de modelagem na Walt Disney Animation, uma inspiração e um modelo a se seguir”, exemplifica Elisa.

Anne é prática. “Eu sou muito honesta e sincera, então sempre que tentaram me colocar dentro de uma caixa, me neguei, e sempre busquei meus objetivos. Nunca deixei de mostrar minha visão das coisas como mulher e como profissional”, ensina a artista.

“A diversidade é cada vez maior, e não só para mulheres, mas também para grupos LGBTQA+, pessoas pretas, etc. Existe um sentimento maior nessas comunidades de incentivo e apoio a essas minorias, e com certeza isso é algo que vai mudar o cenário do 3D daqui para frente”, sintetiza Elisa.

Sobre o/a autor/a

1 comentário em “Duas jovens talentosas rompem cena masculina no mundo da arte 3D”

  1. Maravilhosa a matéria e essas duas feras que conquistaram seu espaço de forma brilhante e com muita dedicação. Sou fã incondicional do trabalho delas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima