Afeto pela palavra escrita (e impressa) dá vida à “Crônica francesa”

Assim como alguns cineastas são assombrados pela morte ou pelo sentido da vida, Wes Anderson tem uma fixação por velhas tecnologias

Para Wes Anderson, não bastam imagens e diálogos. Ele precisa de textos. Mesmo que seus personagens falem pelos cotovelos (vários deles falam), o diretor sempre dá um jeito de inserir textos, muitos textos, em seus filmes.

Pode ser direto na tela, anunciando personagens ou explicando detalhes da trama; pode ser como trechos de livro ou em pedaços de papel presos em quadros de cortiça. Às vezes, eles aparecem muito rápido ou são longos demais para que possam ser lidos, mas estão lá. Os textos.

Essa é uma marca do cineasta desde “Pura adrenalina” (1996), a estreia de Anderson, quando a câmera mostra um plano criminoso esboçado num caderno de brochura. O apego do diretor pela palavra escrita (e impressa) tomou conta de “Os excêntricos Tenenbaums” (2002) e o filme é dividido em prefácio e capítulos – e tem também um narrador bastante literário. Há até páginas ilustradas que aparecem para anunciar cada segmento da história, como se tivessem sido extraídas de um livro.

Agora, essa pequena obsessão fica ainda mais evidente com “A crônica francesa”, que estreou há pouco no Star+.

O filme se inspira na revista “The New Yorker” e em jornalistas famosos dos Estados Unidos, mas não chega a ser uma “carta de amor ao jornalismo”, como anunciaram por aí. É, na melhor das hipóteses, um respeitoso aceno de longe para o jornalismo.

Tati

A homenagem mais enfática que Anderson faz na “Crônica francesa” é ao cinema de Jacques Tati (1907–1982). Há uma cena, no comecinho do filme, em que um garçom carrega uma bandeja de bebidas – uma bela bandeja de bebidas: com vinho, café, um shot de ostra etc. – até o escritório do editor e dono da revista “The French Dispatch of the Liberty, Kansas Evening Sun”.

Para chegar ao escritório, no último andar do prédio, ele sobe escadas e passa por corredores e sacadas, enquanto um pequeno elevador iça a bandeja até o topo. A cena faz referência a “Meu tio” (1958), uns dos maiores clássicos de Tati.

Assim como o gênio francês da comédia, Anderson também tem um interesse enorme em tecnologias. Enquanto Tati brincava com as tecnologias do futuro, Anderson prefere as do passado. São tantos os exemplos disso em “Crônica francesa” que fica difícil escolher só um, então escolho o primeiro: a abertura, que mostra uma imprensa imprimindo a todo vapor. Porém, as obsessões de Anderson vão além de livros, tecnologias e Tati (impossível dar conta de todas aqui).

Há uma história (ou artigo) dentro da “Crônica francesa” dedicado à gastronomia. (Foto: Divulgação)

Nesta edição

Como se fosse um exemplar de “French Dispatch”, “A crônica francesa” tem uma introdução, três artigos e um obituário.

A introdução apresenta Ennui-sur-Blasé, ou “Tédio-sobre-Indiferença”. Indiferença, nesse caso, é também o rio que atravessa a cidade fictícia que abriga a redação da revista editada pelo jornal “Kansas Evening Sun”. Nessa apresentação, o jornalista Herbsaint Sazerac (Owen Wilson) descreve o local a partir do submundo, prestando atenção nos marginalizados e nos detalhes sórdidos que ninguém mais se dá o trabalho de ir atrás – como o número de corpos retirados do rio a cada mês.

É possível traçar um paralelo de quase todos os personagens principais do filme com figuras que existiram de fato, todas listadas no fim do filme (aí, de fato, Anderson faz uma homenagem aos jornalistas que o inspiraram).

Por exemplo, o interesse de Sazerac pela parte menos afortunada da sociedade tem a ver com a obra de Joseph Mitchell (1908–1996), que praticou jornalismo literário décadas antes da modalidade ganhar esse nome e se tornou um dos monstros da revista “New Yorker”.

Em seguida, no filme, os três artigos falam, de maneira geral, sobre arte, política e gastronomia. Desses, o melhor é o terceiro, em que o escritor Roebuck Wright (numa interpretação incrível de Jeffrey Wright) vai até a cadeia da cidade para conhecer o famoso chef Nescaffier (Steve Park), que cozinha para o comissário de polícia.

Roebuck é, mal disfarçadamente, o escritor James Baldwin (1924–1987), o romancista de “Notas de um filho nativo”. Mesmo a melodia na fala de Roebuck lembra a de Baldwin – como aparece no documentário “Eu não sou seu negro”.

Bill Murray (à dir.) interpreta o editor Arthur Howitzer Jr., inspirado em Harold Ross, o fundador da  “New Yorker”. (Foto: Divulgação)

Morte

Por fim, há o obituário de Arthur Howitzer Jr., o editor da “French Dispatch” interpretado por Bill Murray e mais ou menos inspirado em Harold Ross (1892–1951), o fundador da “New Yorker”. Howitzer Jr. deixou uma série de instruções para que, com sua morte, a publicação fosse encerrada e os colaboradores e assinantes, indenizados. Assim, o fim do editor seria também o fim digno da revista. É um desfecho lindo porque, no jornalismo, fins dignos não acontecem com frequência.

Onde assistir

O Star+ exibe “A crônica francesa” e outros sete filmes de Wes Anderson.

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