Caetano Galindo espera que a plateia ache “Ana Lívia” uma peça esquisita

O autor da peça em cartaz no Festival de Curitiba fala que gosta do esquisito na arte e que "Ana Lívia" é um teatro engajado com a plateia e cheio de coisas engraçadas, apesar do estranhamento

É com bom humor que o escritor, tradutor e professor Caetano Galindo inicia o papo com jornalistas em entrevista coletiva sobre “Ana Lívia”, peça em cartaz no Festival de Curitiba. O texto é parte do capítulo mais recente da história de amor vivida por ele com o português brasileiro e foi feito sob encomenda, atendendo a um pedido da atriz Bete Coelho que, ao lado de Georgette Fadel, estrela a montagem da Cia BR116 dirigida por Daniela Thomas. Após chegar aos palcos de São Paulo-SP no final do ano passado, o espetáculo finalmente estreia na cidade natal do autor com apresentações no Teatro da Reitoria da Universidade Federal do Paraná, ou seja, praticamente no quintal de sua casa. 

O caminho escolhido para “Ana Lívia”, primeira peça que Galindo assina individualmente como dramaturgo, foi na contramão do percorrido no penúltimo livro – “Latim em Pó – Um passeio pela formação do nosso português”, publicado no ano passado (2023) pela Companhia das Letras – que o tornou conhecido para além do mundo acadêmico e do círculo dos grandes letrados. A escolha pode parecer estranha, porém não é inesperada conforme ele explica: “Eu vou escrever o “Latim em Pó”, que é um domínio de textos difíceis, complicados, inacessíveis, e venho para falar com todo mundo; aí, vou escrever teatro, que devia ser um negócio para falar com um monte de gente, e faço um negócio esquisito. Mas eu gosto do esquisito em arte, é a minha palavra chave, se pego uma resenha e diz weird, é esse filme que vou ver, é essa peça que eu vou querer assistir.” 

O espetáculo da BR116 tem como inspiração “Finnegans Wake”, de James Joyce, e Galindo é um dos maiores especialistas brasileiros na obra do irlandês. Isso, por si só, é suficiente para muita gente apostar que se trata de um teatro hermético, feito para poucos eleitos, mas o dramaturgo não demonstra desconforto pelo julgamento antecipado. “Tem gente que vai achar cabeção, no sentido de que não é uma história ortodoxa, com um desfecho limpinho e bonitinho, com um enredo claro. Tem uma certa loucura envolvida”, diz antes de assumir que a pior situação que vem vivendo é encarar a pergunta sobre o que é a peça, até porque “cada um tem uma resposta diferente”.

Contudo, existe uma dualidade. O estranhamento está ali ao mesmo tempo em que há o engajamento mais aberto com a plateia do teatro, com a interação franca das atrizes com o público e momentos cômicos até exagerados, o que pode surpreender por ser algo esperado nos trabalhos de Georgette e um tanto quanto incomum nos de Bete. O autor esclarece que dá para se divertir assistindo ao espetáculo, contudo a ambição é outra: “Espero que as pessoas saiam mais se perguntando ‘o que diabos foi aquilo?’ do que tendo entendido uma história clara, tem muita coisa para você ficar com a pulga atrás da orelha”. Entre essas dúvidas ele destaca que não se sabe ao certo a identidade das duas mulheres em cena e a relação existente entre elas, nem o que estão fazendo ali.

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Prólogo

A primeira vez dele no teatro não foi propriamente com “Ana Lívia”, nos últimos dois anos foram vários encontros com o palco. Três deles em projetos dirigidos por Felipe Hirsch, a peça “Língua Brasileira”; o espetáculo imersivo “Autorretrato”, de 2023; e a obra que está em cartaz encerrando os 11 anos de vida da companhia Ultralíricos, “Agora tudo era tão velho – Fantasmagoria IV” (os dois últimos com a parceria de Guilherme Gontijo Flores nos textos). No meio disso, Bete o procurou para trabalhar na adaptação do monólogo que levou para a cena uma “Molly Bloom” saída da tradução feita por Galindo de “Ulisses”, de Joyce. Com a aproximação, surgiu a deixa para mostrar “Lia”, romance publicado originalmente como folhetim no Plural, para Bete e Gabriel Fernandes da BR116. Ao ler o texto, a atriz e diretora viu que o autor era “capaz de escrever mulheres”, foi quando surgiu a encomenda de uma peça para duas atrizes. 

No meio desse cenário, é surpreendente ele responder que nunca havia se imaginado dramaturgo antes e que talvez não tenha dado bola para os sinais de um chamado: “Tinha umas coisas estranhas ali. Eu escrevi uma peça quando eu tinha 12 anos de idade, fiz uma adaptação de um texto ainda na universidade, e a primeira coisa que traduzi na vida foi uma peça de teatro, foram duas na verdade.” O espanto se desfaz com a explicação de que o comportamento não foi dedicado apenas para a dramaturgia, “nunca me imaginei nada que eu faço; eu me imaginei músico desde que eu tinha oito anos de idade e continuo me imaginando conceitualmente músico frustrado”. Tudo o que aconteceu foi por acaso, por aceitar propostas interessantes e ser cara de pau. “Escrevi porque apareceram as oportunidades, fiz um concurso na universidade porque apareceu uma oportunidade, e as coisas foram acontecendo meio porque eu deixei elas acontecerem. Então, nunca me imaginei dramaturgo, no entanto, tenho um grau de satisfação com isso hoje que eu não tinha com qualquer outra coisa profissional há muito, muito tempo. Suspeito que eu não vá ficar muito longe disso daqui para frente.”

A estreia em Curitiba, inclusive, derrubou a barreira que o protegia do novo vício, o teatro. Antes os projetos com a Ultralíricos e a BR116 estavam a 400 quilômetros daqui, vez ou outra a distância era vencida pessoalmente, mas a maior parte do tempo terminava no WhatsApp e em muitos e-mails. Aqui é diferente, Galindo mora praticamente ao lado do Teatro da Reitoria da Universidade Federal do Paraná, onde são as apresentações da peça, local que ele frequenta há cerca de 30 anos, somando o tempo de aluno e professor e agora precisa tomar certo cuidado. “Eu estou com muita dificuldade em não ficar morando dentro dos ensaios, estou indo ali três, quatro vezes ao dia, passo duas horas olhando as pessoas afinarem luzes, porque eu acho bonito.” Nesse espetáculo, a luz que o encanta foi criada por outro prata da casa curitibana, o premiadíssimo Beto Bruel.

O fascínio pelo texto do teatro

Durante o papo, dá para entender o quanto o teatro tem sido sedutor para ele. Galindo tem 50 anos e não perdeu a curiosidade por aprender mais sobre o que gosta, parece se alimentar de experiências que nada têm de aventureiras, mesmo quando envolvem sair do lugar seguro e particular de escritor e tradutor renomado.

“Entreguei um texto e, besta que eu sou, achei que estava entregando uma peça”, tudo estava só começando. Vieram mais 11 ou 12 versões, revisões, alterações, participações em ensaios para assistir e responder às demandas do grupo, e por aí vai. Não se deixou abater, o efeito foi exatamente o contrário: “Vi o quanto o processo é coletivo num outro grau e fiquei absolutamente fascinado por isso, pela ideia de mexer no texto”. Trabalhar com Bete Coelho, Daniela Thomas e Georgette Fadel também foi a oportunidade de aprender uma arte nova com as melhores, segundo ele. 

Astronauta

Para responder o que veio antes, se a paixão pela língua ou a tradução, Galindo não titubeia: “A paixão pela língua antecede tudo, qualquer coisa”, e segue dizendo que a tradução também foi algo que surgiu ao acaso. Nos anos 80, em Curitiba e sem internet, a ideia de ser tradutor literário era equivalente a de querer “ser astronauta”. As editoras trabalhavam no papel e estavam em São Paulo e no Rio de Janeiro, ele também nem sabia que a carreira de tradutor literário existia. 

Já na academia, lecionando na Universidade Federal do Paraná, a vida o levou a precisar inventar um novo projeto e “num momento de completa loucura” decide traduzir “Ulisses”, porque via ali um projeto linguístico interessante. Demorou um pouco, mas o negócio foi para frente. Uma coisa puxou a outra, surgiram trabalhos e ele descobriu que é mais rápido do que a maioria na tradução literária. De 2003 para cá, trouxe 57 livros para o português do Brasil e o prazer em traduzir continua, tanto que ainda o leva para novos lugares legais e abre novas portas. 

Contudo, o começo foi antes. Tudo o que ele chama de “acaso” veio dessa “empolgação, barra, semirrevolta” com o que é feito com o português brasileiro, especialmente em diálogos na televisão, em filmes e até no teatro. “Cara, ninguém fala essa frase que a pessoa está usando. E ela é falante nativa dessa língua, toma café da manhã todo dia conversando em português, e acha que pode dizer isso, e o diretor acha… Isso foi me irritando, eu tinha muita vontade de escrever diálogos do jeito que eu achava que fazia mais sentido”. 

Escreveu e vai escrever mais certamente. Para o teatro, um novo projeto já está engatado com a Bete e a BR116, contudo o pedido para adiantar algum spoiler do que vem por aí não teve sucesso sob a justificativa de que não existe nada definido ainda, fora a previsão da estreia que deve acontecer no ano que vem. Caetano Galindo chega ao epílogo da conversa com o mesmo bom humor da abertura: “Não tem como dar spoiler, porque não tem o que ‘spoilá’ por enquanto.”   

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“Ana Lívia”

A peça “Ana Lívia” está em cartaz na mostra Lucia Camargo, do Festival de Curitiba, nos dias 26 e 27 de março, terça e quarta-feira, às 20h30, no Teatro da Reitoria. Ingressos à venda aqui ou na bilheteria física do evento. 

Sinopse: Ana precisa contar uma coisa terrível, mas Lívia não quer deixar ela falar. Lívia quer falar de uma nova peça enquanto Ana sente que chegou ao seu terceiro ato. Cada uma delas está sozinha com suas dores, seus desvios e seus medos. Cada uma tem apenas a outra.  A vida passada, o teatro, o papel que tiveram e têm uma na vida da outra, o futuro que não sabem se terão. Tudo isso volta à tona numa conversa em que as duas tentam fugir da verdade, da juventude, da vida, do fato de estarem sozinhas no palco e da dependência de um texto escrito por outra pessoa. Duas atrizes que agora não têm mais um dramaturgo; dois papéis de um personagem só. Ana foi, Lívia é, Ana Lívia… será?

32º Festival de Curitiba

De 25 de março a 7 de abril. Ingressos com diferentes preços, até R$85 (mais taxas administrativas), à venda no site oficial do evento e na bilheteria física exclusiva no ParkShoppingBarigüi – piso térreo – (Rua Pedro Viriato Parigot de Souza, 600 – Ecoville), de segunda a sábado, das 10h às 21h, e, domingos e feriados, das 12h às 20h.

A programação tem opções de atrações gratuitas. Verifique a classificação indicativa e orientações de cada espetáculo.

Outras informações sobre a peça “Ana Lívia” e outros espetáculos pelo site do Festival de Curitiba (www.festivaldecuritiba.com.br), ou pelas redes sociais: no Facebook, @fest.curitiba; no Instagram, @festivaldecuritiba; e no Twitter, @Fest_curitiba.

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