Bife Seco faz um musical esperto a 7 mil quilômetros da Broadway

"O fantasma de Friedrich" consegue fazer um musical à brasileira, com texto inteligente e bom elenco

A certa altura de “O Fantasma de Friedrich” o espectador se dá conta de que está vendo diante de si, no palco, um suposto fantasma de Nietzsche discutindo filosofia com um urso de pelúcia chamado Adolfo. A discussão se dá, evidente, por meio de uma música em que o coro é formado por fantasmas de célebres filósofos. O mais curioso é que a coisa toda funciona, e fundamentalmente por causa da imensa capacidade de fabulação do autor/diretor, Dimis, o grande nome por trás da Companhia Bife Seco.

Pedro Almodóvar diz que nascer na Espanha e querer ser cineasta equivale mais ou menos a ser chinês e desejar ser toureiro. A comparação poderia muito bem para o caso de Dimis, que nasceu a mais de 7 mil quilômetros da Broadway e decidiu ser autor de musicais. O primeiro ponto a entrar na discussão é: por estranho que pareça, ele conseguiu.

Nesta edição do Festival de Teatro de Curitiba, a Bife Seco estreou oficialmente (depois de uma pré-estreia no ano passado), o seu novo musical, classificado pela companhia como uma ópera punk. “O Fantasma de Friedrich” é ousado em mais de um sentido. Para os padrões brasileiros, é grande: tem cerca de 30 artistas envolvidos, 18 números musicais e exigiu muito trabalho para ficar em pé.

A trama, como a de qualquer ópera que se preze, pode ser reduzida a um tuíte. Uma garota foge depressão para poder entrar em uma clínica psiquiátrica aparentemente maligna. Ela faz isso para achar sua irmã gêmea que teria sido trancafiada lá e nunca mais foi vista. Na clínica, faz amigos que a ajudam até que – claro – vem a reviravolta, o clímax.

Dimis tinha, basicamente, duas opções. A primeira seria a de transplantar um musical da Broadway para uma realidade off-off-off-off-(muitas vezes off)-Broadway. Nesse caso, o fracasso estaria garantido. Com a verba que o mecenato provê para um espetáculo, seria impossível concorrer com a grandiosidade dos espetáculos americanos. O espectador sairia com a impressão de que lhe venderam uma celebridade quando se tratava, na melhor das hipóteses, de uma visita à estátua do famosinho em um museu de cera.

Mas Dimis foi esperto, e seguiu outro caminho. Fez um musical de outro modo. Primeiro, vale esclarecer: não tem muito de ópera. E o que se vê no palco tem pouco de punk: tudo é limpinho e bem comportado e ninguém está cuspindo na plateia. Eis uma das espertezas da trupe: eles são bons de vender o seu peixe.

O maior ativo da companhia, porém, é o texto criativo de Dimis. Além da história bem bolada, o texto cabe perfeitamente na boca dos atores, e as letras são um caso de sucesso à parte. Como é bom ouvir um libreto que funciona em português, com frases bem oralizadas, sem as rimas forçadas no infinitivo que irritam o ouvido, e com um brilhante uso de baixo calão, bem do jeitinho que a gente fala na vida real.

O texto é mio caminho para criar uma historia de fato brasileira. As personagens são bem construídas: na primeira música, você já cria uma ligação com a divertida personagem com Tourette, e até o nome da enfermeira má (Lucy Fernanda) é engraçado.

A trama, como numa ópera real, só anda quando não há música. E aí o texto é melhor ainda, com expressões como “Minha Nossa Senhora do Zolpidem Vencido”, dita por uma enfermeira. O fantasma de Nietzsche, que dá origem ao título, e surge da leitura da garota na clínica, passa uma hilária carraspana em Schopenhauer num número musical. “É um pessimista, não aprovo sua conduta”. A que o fantasma de Schopenhauer responde com um jamais acabado “Mas que grande filho de uma…”

A direção foge também das danças espetaculares e do tom épico que marcam musicais de Hollywood. Tudo é clean, com um cenário elegante e funcional, que deixa os atores em primeiro plano o tempo todo. E, principalmente, o resultado funciona. A plateia aplaudiu as “árias”, os “duetos” e riu o tempo todo das boas tiradas – como Nietzsche passando uma carraspana em um intruso Olavo de Carvalho.

O Festival fez certo ao dar espaço para a peça na Mostra Lúcia Camargo, a parte mais valorizada do evento. Apesar das dificuldades, a Bife Seco venceu o fantasma da Broadway e conseguiu deixar a plateia disposta a ver novos musicais do mesmo padrão.

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