Olhar de Ramon Vitral se concentra no “subversivo” das HQs

Jornalista que entrevistou lendas-vivas das HQs fala sobre gostos, motivações e perguntas fundamentais 

No meio das estrelas que orbitam no universo das HQs contemporâneas no Brasil, encontramos um nome que não é propriamente um quadrinista, é Ramon Vitral – jornalista com status de celebridade na área – e que participa da Bienal de Quadrinhos de Curitiba. Não é para menos, pois ele já entrevistou lendas como Joe Sacco, Adrian Tomine, Marcelo D’Salete, Chris Ware, Rutu Modan, Emil Ferris, Nina Bunjevac, Juscelino Neco, Rafael Coutinho, Charles Burns e Helô D’Angelo.

A extensa lista de artistas que já conversaram com ele é resultado do trabalho como repórter em jornais, revistas e portais importantes (“Folha de S. Paulo”, “O Globo”, “O Estado de S. Paulo”, “O Estado de Minas”, “Rolling Stone”, “Nexo” e UOL), mas não só. É no Vitralizado, blog independente especializado em HQs, que ele exercita o radar e a escuta, para levar aos leitores a voz de nomes consagrados e também de novos talentos. 

Bienal de Quadrinhos

Vitral agora está focado na divulgação de “Vitralizado – HQs e o Mundo” (MMarte), livro com uma seleção de textos de entrevistas feitas ao longo dos dez anos de atividade do blog que será lançado em Curitiba na Bienal de Quadrinhos, e, antes de desembarcar na cidade, conversou com o Plural (por WhatsApp e e-mail) sobre motivações, o gosto pelo “subversivo”, e sobre como não se interessa pela “legitimação dos quadrinhos como forma de arte”. Como se não bastasse, o jornalista fez indicações de obras e ainda respondeu às três perguntas que nunca deixa de fazer aos seus entrevistados. Confira a entrevista a seguir.

Por que lançar “Vitralizado – HQs e o mundo” como livro?
Transformar o blog e a minha produção sobre quadrinhos em livro era um desejo antigo, mas só comecei a trabalhar nesse projeto para valer em 2021. Eu suspeito que o meu blog não vai durar para sempre, uma hora vai sair do ar, assim como a maior parte das minhas matérias disponíveis na internet. E sem falsa modéstia: tenho consciência da reunião extraordinária de entrevistas com quadrinistas que acumulei desde 2012, quando comecei a entrevistar autores de HQs. Então acho não apenas importante ter um registro físico desse trabalho todo, como também acho válido celebrar tudo o que fiz até aqui. Fico muito feliz que os editores da editora MMarte compraram e investiram nessa ideia. Ao mesmo tempo, acho o livro revelador em relação aos quadrinhos publicados no Brasil nos últimos 10 anos, trata-se de um registro muito rico do que tem saído por aqui. O que ele revela e qual é esse registro cabe a cada leitor descobrir.

Em um dos textos que entrou no livro, está clara sua posição sobre o jornalismo (que não deve ser publicidade, divulgação). Como você vê essa questão com o avanço da mediação entre obras e público nas redes sociais?
Vou generalizar aqui, mas acho que os perfis em redes sociais voltados para a divulgação e produção de conteúdo sobre quadrinhos têm reflexões, no máximo, limitadas em relação à ética. É possível até alegar que a maior parte dos produtores de conteúdo sobre quadrinhos não se propõem a fazer jornalismo, mas estou falando de ética nas relações humanas. São pessoas dedicadas a convencer o público a comprar um quadrinho por links patrocinados que geram lucro pessoal, sem deixar às claras que esse é o propósito final. Eu busco diálogos, criar pontes entre autores, obras de artes e leitores potenciais. Não acredito na venda como propósito maior da minha profissão e, se esse é o objetivo maior de alguém, é fundamental que esteja sempre às claras. Acredito no jornalismo como prestação de serviço público. Se o objetivo final é apenas a venda e o fomento de multinacionais com práticas predatórias, o que se está fazendo é um desserviço.

“Vitralizado – HQs e o Mundo”, publicado pela editora MMarte, tem lançamento na Bienal de Quadrinhos de Curitiba. (Foto de: Natália Elmor)

Você foi um dos responsáveis pelo Prêmio Jabuti abrir uma categoria para HQs. Por que encampou essa batalha?
Não tenho interesse nenhum na “legitimação dos quadrinhos como forma de arte”. Se alguém ainda vê HQs como uma “arte menor” ou qualquer coisa do tipo, trata-se de uma pessoa com uma leitura de mundo muito limitada com quem não tenho interesse nenhum em perder meu tempo. O que quero dizer é: não me envolvi na campanha em prol dos quadrinhos no Prêmio Jabuti tendo em vista essa possível legitimação pública. Entrei nessa porque acho que o Jabuti é uma plataforma que pode ampliar o alcance e o público potencial de HQs. Quanto mais gente lendo quadrinhos melhor. 

Dito isso, amo que quadrinhos possam ser vistos como uma linguagem com ares juvenis, subversivos e antiestablishment. Gosto da presença da categoria quadrinhos no Jabuti inclusive pelos possíveis ruídos que ela possa causar. Quadrinhos não são literatura e têm tiragens e alcance de público habitualmente menores que obras literárias, mas eles estão ali, atrevidamente representados, como parte do mercado editorial. 

Para iniciar alguém no mundo dos HQs, qual artista e título indicaria? E para os já iniciados, qual não pode faltar?
Indico os melhores, sempre. Não acho necessária nenhum tipo de iniciação escalonada. Para ficar só entre brasileiros: leiam Laerte (tudo), Shiko (“Lavagem”), Marcelo D’Salete (“Angola Janga”), Marcello Quintanilha (“Luzes de Niterói”), Aline Zouvi (“Não Nasci Sabendo”), Helô D’Ângelo (“Isolamento”), Diego Gerlach (“Pinacoderal”) e Kael Vitorello (“Kit Gay”). São artistas que criaram obras reveladoras em relação às possibilidades dos quadrinhos como linguagem. 

Qual obra é a sua preferida? Por quê?
Difícil essa, hein… Vou com alguma coisa da Laerte porque ela foi definitiva na minha formação como leitor. Eu diria que o “conjunto da obra” dela é a minha obra preferida. Se você só puder ir atrás de um único quadrinho da Laerte, sugiro “A Noite dos Palhaços Mudos” (Conrad). É uma HQ curta e barata que reflete o melhor da Laerte e, também, o melhor do quadrinho nacional: subversão, experimentalismo e bom humor.

Para finalizar, as próximas perguntas foram plagiadas de você mesmo. São as três que você aponta como uma espécie de fio condutor das entrevistas que faz, o que nunca deixa de perguntar aos artistas com quem conversa.

O que você vê de mais especial acontecendo na cena brasileira de quadrinhos hoje?
O que vejo de mais especial, aquilo que mais chama a minha atenção, está ligado àquilo que mais gosto: subversão, experimentalismo e bom humor. Vejo cada vez mais quadrinhos brasileiros bem humorados, propositivos em relação ao uso da linguagem e subversivos (seja em termos estéticos ou sociais). São muitos gibis estranhos, incômodos e engraçados. Isso me satisfaz. 

Como leitor e jornalista, o que mais te interessa hoje em termos de histórias em quadrinhos?
Me interesso cada vez mais pela forma e cada vez menos pelas histórias. Gosto de quadrinhos que não podem ser mais nada além de quadrinhos, de HQs que são boas exatamente por serem quadrinhos, não pelas histórias contadas por ela. Histórias, tramas e enredos são coisas costumeiramente superestimadas. 

Qual a memória mais antiga que você tem da presença de quadrinhos na sua vida?
Minhas memórias mais antigas relacionadas a histórias em quadrinhos estão ligadas às tiras de jornais. Meus pais sempre assinaram jornais, a “Folha de S.Paulo” e “O Globo”. Lembro deles lendo as tiras enquanto tomávamos café da manhã e comecei a fazer o mesmo. Então a minha relação com histórias em quadrinhos está ligada também ao início da minha relação com jornalismo. As duas coisas sempre estiveram conectadas para mim. A última página da Ilustrada, caderno de cultura da “Folha”, com as tiras do jornal, foi a minha iniciação no mundo das HQs.

Leia também: Bienal de Quadrinhos homenageia a letrista Lilian Mitsunaga, que aprendeu a ler com gibis

Ramon Vitral na Bienal de Quadrinhos

  • O jornalista participa da conversa “Vitralizado: jornalismo cultural, HQs e o mundo”, na quinta-feira (7), às 11h, no Cine Guarani; e do bate-papo “Gibi em pauta: jornalismo de quadrinhos”*, na quinta-feira (7), às 18h, no Auditório Antonio Carlos Kraide. *Acessível em Libras.
  • Ele também estará na sessão de autógrafos de sexta-feira (8), às 17h30. (As sessões são no térreo e no 1º andar do MuMA.)
  • Vitral ainda irá mediar, junto com Carol Dartora, a conversa “A história em quadrinhos: Mukanda Tiodora, por Marcelo D’Salete”*, no sábado (9), às 19h30, no Cine Guarani. *Acessível em Libras.

A Bienal de Quadrinhos de Curitiba vai de 7 a 10 de setembro, sempre das 11h às 20h, no Museu Municipal de Arte – MuMa (Av. República Argentina, 3430, Terminal do Portão). Todas as atividades são gratuitas. Outras informações no site bienaldequadrinhos.com.br e no perfil @bienaldequadrinhos no Instagram. A programação completa pode ser conferida aqui.

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