Bienal de Quadrinhos homenageia a letrista Lilian Mitsunaga, que aprendeu a ler com gibis

Em entrevista, a letrista fala sobre suas mais de quatro décadas de trabalho e do que espera para o futuro dos quadrinhos

A letrista Lilian Mitsunaga é a grande homenageada da 7ª edição da Bienal de Quadrinhos de Curitiba, com o tema “Resistências, Existências: Quadrinhos e Corpos Plurais”. Perguntei a uma das três curadoras, Mitie Taketani, proprietária da Itiban Comic Shop, qual o motivo da escolha por Mitsunaga entre tantos nomes (são mais de 40 artistas no evento, entre brasileiros e também de fora do país). 

Como resposta, a curadora falou sobre a importância de um trabalho que é quase invisível, mas fundamental, e sobre a importância do talento de Mitsunaga para os brasileiros terem acesso a obras de peso no mundo dos quadrinhos. Muitas estrelas desse universo só toparam publicar no Brasil porque as mãos dela estavam no tipologia das edições por aqui.

Só para ter uma breve ideia, o portfólio da artista vai dos exemplares brasileiros dos quadrinhos da Disney, passa pela criação de fontes para as publicações de Will Eisner, Craig Thompson, Bill Watterson, Art Spiegelman, David Mazzucchelli, Chris Ware, e por trabalhos feitos para os quadrinistas nacionais como Angeli, Laerte, Lourenço Mutarelli e Caeto. Esses são apenas exemplos, porque tem muito mais.

A letrista nasceu em Mauá-SP e hoje mora em São Paulo-SP, se formou em Arquitetura pela Universidade de São Paulo (USP), começou a fazer letras à mão para a editora Abril nos anos 80, depois fez trabalhos para a Escala, Martins Fontes e VHD Diffusion, Conrad e Companhia das Letras, entre outras. 

O Plural conversou com Lilian Mitsunaga sobre sua trajetória profissional, seus gostos, o sentimento de ser alguém presente na alfabetização de muitos leitores, e o futuro dos quadrinhos. Leia a entrevista a seguir. 

Como é o trabalho de uma letrista que desenvolve tipologias para HQs e Graphic Novels com tantos grandes títulos no currículo e prêmios também? 

Subjetivamente é muito prazeroso, mas não foi planejado ficar tanto tempo fazendo HQs. Sempre pude trabalhar no hoje tão falado home office e a possibilidade de poder trabalhar remotamente me levou aos quadrinhos. Depois fui descobrindo que era muito mais atraente do que o curso de arquitetura, que eu estava terminando, contudo requer muita disciplina e ter outros talentos para arte ajuda muito. Não me limito só a colar os textos traduzidos, também faço muitos retoques na arte, além de criar fontes para os livros. Hoje trabalho mais com livros em quadrinhos do que com revistas periódicas.

Uma das curadoras da Bienal, a Mitie Taketami, traça um paralelo entre a alta qualidade do seu trabalho e uma boa trilha sonora para o audiovisual, “é fundamental, mas praticamente invisível”, algo fora do primeiro plano. Como se estabelece o dueto ou o duelo entre o lado artístico criativo com o respeito ao autor e a obra original? 

Uma obra deve ser harmônica. Sempre procuro usar tipos que não sobressaiam mais que o traço do desenho. Uma fonte muito pesada pode estragar essa harmonia, destoando do conjunto. Quando se tem o texto aplicado pelo autor e há a possibilidade de fazer uma fonte parecida com a grafia dele, opto por esse caminho. Acho que deve ser um dueto e não um duelo.

Qual trabalho foi o mais prazeroso, o mais desafiador? Entre os nacionais, tem algum que é o de maior peso? 

Acho que o mais prazeroso é sempre o que estou fazendo no momento, porque a cada um se soma mais experiência e aprendizado. Acabei de diagramar um livro infantil que adorei fazer, as ilustrações eram muito fofas e o texto sensacional. Também fiz um livro de texto corrido, mas com muitas coisas complicadas para diagramar, desafiador, mesmo assim amei o trabalho.

Adorava letreirar “Batman” porque gosto do personagem. O mais trabalhoso não posso dizer, ainda não foi publicado, ahah! Um que consumiu muitas horas para construir fontes foi “Asterios Polyp”. Um feito à mão, e não rendia, “Freak Brothers”. Sabe, eu vou esquecendo o trabalho que deu… sigo em frente (rsrs).

Eu diria que todos os nacionais são sensacionais justamente por serem daqui, sem demagogia. Já letrei para os livros do André Toral, Luiz Gê, Laerte, Rafael Coutinho, Caeto, Lourenço Mutarelli, Aluir Amancio, entre outros… esqueci de citar o Celso Menezes, do “Jambocks”, cada hora lembro de alguém. Como dizer que um tem mais peso que outro? Todos são quadrinistas que admiro. 

São mais de 40 anos de carreira. O que mudou no seu processo criativo e de produção?

Antes tudo dependia somente do talento e da sua letra boa somada à capacidade de desenhar tipologias diferentes. Hoje os recursos são muito maiores e a internet rápida proporciona comodidade. Antes tinha que ir buscar as páginas para letreirar, hoje você pode estar aqui e o editor no Japão, e trabalhar com arquivos pesados em alta resolução. A produção ficou mais rápida.

O Érico Assis, tradutor de “Habibi”, de Craig Thompson, disse em um texto publicado no Blogue da Companhia das Letras, à época do lançamento da edição brasileira da graphic novel (2012): “Aprendi a ler com a letra da Lilian Mitsunaga.” Era uma referência à importância dos seus trabalhos, ainda feitos à mão na Editora Abril, para ele e outros milhares de leitores. Como você se sente diante disso? 

Antiga, ahah! Brincadeira. Sinto-me lisonjeada, porque trabalhar com quadrinhos é uma alegria. Li uma frase de Disney que cabe aqui: “Prefiro divertir as pessoas na esperança de que aprendam, do que ensiná-las na esperança de que se divirtam.” Fazer parte do time que levava entretenimento para essas pessoas sempre foi sensacional, e o fato da meninada aprender a ler por meio das HQs é muito gratificante. Eu mesma aprendi a ler com gibis.

Exemplo do trabalho da letrista Lilian Mitsunaga, que será homenageada pela Bienal de Quadrinhos de Curitiba. (Foto: Divulgação)

O que gosta de ler por prazer, sem qualquer obrigação profissional? 

Gosto de boas histórias. Não vejo como obrigação ler quadrinhos, porque cada dia vem uma coisa diferente que, talvez, eu nem teria chance de ler se tivesse que comprar tudo. E gosto de ler romances policiais. 

Como foi para uma jovem mulher começar a trabalhar nos anos 80 no universo das HQs no Brasil? Como era o espaço e a receptividade para as mulheres na época e como é hoje?

Olha, nunca me senti discriminada por ser mulher, não naquela época e nem hoje. Eram muitas mulheres na editora, nos cargos de chefia, na arte, ilustradoras. Eu acho que sofri um pouco no início por ser a mais nova contratada, meio “estagiária”, então um pessoal recusava alguns trabalhos, tidos como “osso” ou “fria”, aí passavam pra mim. Eu sabia, é claro, mas fingia que não, e letreirava, ahah! Contei isso para um amigo recentemente, ele achava que eu era boba mesmo na época. Rimos muito! Eu falei que sabia, mas ficava na minha. Alguém tinha que fazer, né?!

O que você vê de diferente hoje e no que aposta como caminhos para o futuro das HQs e graphic novels?

Hoje o panorama é diferente, aquelas tiragens de 500 mil exemplares de décadas passadas não são mais realidade. Não tenho ideia sobre o futuro porque com inteligência artificial (IA) não sei como será. Quando a TV apareceu diziam que o cinema iria acabar, não acabou, acho que as pessoas precisam de entretenimento. Talvez mude o processo de criação, não sei, tomara que os quadrinhos sobrevivam… Mas acho que a imaginação sempre terá espaço para contar histórias seja no papel, em vídeo ou outro meio que venha por aí…

Lilian Mitsunaga na Bienal de Quadrinhos

  • A letrista participa de uma conversa, com mediação de Liber Paz, dia 9 de setembro (sábado), às 18h, no Auditório Antonio Carlos Kraide. (Acessível em Libras.)
  • Mitsunaga também estará na sessão de autógrafos do domingo (10), às 15h30. (As sessões são no térreo e no 1º andar do MuMA.)
  • A exposição da Bienal “Lilian Mitsunaga: quatro décadas nos quadrinhos”, sobre a vida e a obra da artista, fica em cartaz de 7 de setembro até 7 de novembro, na sala 1 do MuMa.

A Bienal de Quadrinhos de Curitiba vai de 7 a 10 de setembro, sempre das 11h às 20h, no Museu Municipal de Arte – MuMa (Av. República Argentina, 3430, Terminal do Portão). Todas as atividades são gratuitas. Outras informações no site bienaldequadrinhos.com.br e no perfil @bienaldequadrinhos no Instagram. A programação completa pode ser conferida aqui.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima