Tudo que você sabe sobre a comida italiana é uma mentira?

Pratos considerados tradicionais seriam na verdade uma invenção recente, segundo polêmico historiador

O carbonara? Foi inventado pelos soldados dos EUA durante a Segunda Guerra Mundial. A pizza? Na Itália, só se popularizou na década de 1970. A massa? Foram os sicilianos emigrados nos Estados Unidos no final de 1800 que a introduziram aos italianos de outras regiões.

As teorias de Alberto Grandi, professor de História da Alimentação na Universidade de Parma, estão dificultando a digestão de muitos italianos ao demolir as inúmeras certezas que foram construídas sobre a tradição culinária do país da Bota.

“Mentiras bem contadas”, segundo ele, que recentemente deu uma polêmica entrevista ao jornal britânico Financial Times, que repercutiu no mundo inteiro.

Autor do livro “Denominação de Origem Inventada”. As mentiras do marketing sobre os produtos típicos italianos (sem tradução em português) e de um podcast com o mesmo título, Grandi é considerado por muitos um traidor da Pátria.

Ele se defende dos ataques frisando que a cozinha italiana é riquíssima em variedade e usa ingredientes de elevadíssima qualidade. Suas contestações são voltadas às origens da tradição italiana que, na narração nacional seriam antiquíssimas, quando na verdade não passariam de uma construção de marketing que começou o final dos anos 60.

O célebre spaghetti à carbonara – que alguns fazem remontar ao século 19 – seria uma receita criada por soldados dos EUA que, além de liberar a Itália do nazi-fascismo, misturaram o spaghetti com ovo em pó e bacon, ingredientes típicos do café da manhã norte-americano.

Esses mesmos militares contavam, em cartas enviadas a suas famílias, que, ao percorrer a península italiana para liberá-la da ocupação do Exército alemão, não encontravam pizzarias fora de Nápoles. Portanto, a pizza teria se tornado um prato difundido no restante da Itália só no pós-guerra.

Como se não bastasse, até o final do século 19, a famosa pizza napolitana teria sido uma massa temperada com sal e azeite, que se comia dobrada em quatro. “Uma grande porcaria”, disparou o historiador que, brincando, se comparou ao escritor Salman Rushdie.

Teriam sido os imigrantes italianos de Brooklyn, em Nova York, a criar a pizza como a conhecemos hoje e, de lá, a iguaria teria voltado para Nápoles enobrecida de molho de tomate e muçarela.

A teoria foi refutada por especialistas. O jornalista e pesquisador Angelo Forgione cita Alexandre Dumas que, no livro Le Corricolo, conta que os napolitanos já colocavam molho de tomate nas redondas, em 1835.

Que os napolitanos comem molho de tomate há séculos é testemunhado também por Antonio Latini no Lo scalco alla moderna, obra de 1692 que traz a receita de molho de tomate à espanhola, isto é, com tomates, cebola, pimentão, timo, sal, azeite e aceto.

A teoria de Grandi, de que a primeira pizzaria da história nasceu no início de 1900 em Nova York, é desmentida pelo Arquivo de Estado de Nápoles que guarda uma lista de pizzarias da cidade, datada de 1807. Confrontado por Forgione, o historiador admitiu que disse “abobrinhas” sobre a origem da pizza.
A revisitação das origens culinárias italianas por parte do historiador avança sobre todos os aspectos culinários do país: da massa ao risoto, passando por vinho e azeite.

Grandi confessa que algumas suas afirmações são provocações, como quando diz que o legítimo queijo parmesão se encontra, atualmente, no estado americano de Wisconsin, onde é feito ainda segundo a receita original das décadas de 1920 e 1930, importadas por famílias de imigrantes italianos.
Já a receita do parmigiano italiano evoluiu e, hoje, o queijo produzido de Parma é muito diferente da receita de um século atrás e portanto não pode ser considerado original. “Mas é muito melhor que o do Wisconsin”, reconhece o professor.

A dieta mediterrânea também seria uma invenção do cientista norte-americano Ancel Keys, que estudava os efeitos da alimentação sobre a saúde e descobriu numa viagem ao sul da Itália, na década de 1950, que a população local sofria muito pouco de doenças cardiovasculares, diferente de seus compatriotas.

Segundo Forgione, Keys não inventou nada, mas no máximo deu um nome para um tipo de alimentação – rica em vegetais, legumes, frutas, peixe e massa -, que os napolitanos já seguiam há séculos. Não por acaso, os cidadãos de Nápoles, antes de ficarem conhecidos como mangiamaccheroni (come-macarrão) eram famosos como mangiaverdure (come-verduras).

Grandi é um iconoclasta e justamente relembra que o vinho fortificado Marsala, considerado um produto típico da Sicília, foi na verdade uma invenção dos comerciantes ingleses que, no século 18º, procuravam um produto mais barato e acessível que os caros e conceituados vinhos do Porto e Xerez, da península ibérica.

Ou que a origem do tiramisù não pode ser tão antiga como os italianos gostam de acreditar, pois o doce é preparado com o delicado queijo mascarpone que precisa de refrigeração para ser conservado, tecnologia que se popularizou só no pós-guerra.

Apesar de falhas, erros e imprecisões, o podcast de Grandi vem tendo grande sucesso e suas teorias ganham repercussão na mídia internacional. No Brasil, o sociólogo Carlos Doria deu eco às palavras do italiano.

“O livro de Grandi talvez cumpra a função de preencher uma lacuna na obra-mãe, que é A invenção das tradições, de [Eric] Hobsbawm […] A indignação dos tradicionalistas italianos bem evidencia que a abordagem histórica proposta, apesar de “velha”, ainda tem o dom de criar incomodo. O que é um bom sinal, pois evidencia coisas ainda ‘fora do lugar’”, afirma Doria.

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