O fotojornalista Osvaldo Santos Lima foi a Brumadinho ver como ficou a vida na cidade depois da tragédia. Veja as fotos e leia um depoimento emocionante.
A dor de uma mãe
“Rosângela fez questão de me mostrar a foto de seu filho, enterrado esta semana, e de sua irmã que será enterrada hoje. Forte como somente mães conseguem ser ela me fala do acontecido sem raiva, mas plena de uma dor que sabe apontar o responsável por suas perdas. Ela, como o filho e a irmã, trabalha na mineração. No dia do estouro da barragem estava de folga.”
O horror não vem da lama
“Em Mariana, o maior desastre ambiental mundial, vi ruínas, muitas. Conversei com desabrigados. Vi crianças acostumadas ao mato jogadas em pequenos quartos de hotel – “gentileza” da Vale/Samarco – com seus pais, avós ou tios.
Agora, em Brumadinho, uma quantidade de lama muito menor causou a morte de centenas de pessoas. O horror não reside nas ruínas, na lama que rasga o terreno, mas na dor que encontro nos olhares de quem enterrou um parente ou amigo. O próprio coveiro enterrou seu irmão. Fotografei uma mãe ao lado do túmulo de seu filho, o coveiro que corajosamente trabalha enterrando seus amigos. O cemitério de Brumadinho não terá espaço para os corpos que devem sair da lama. E o Brasil não tem mais espaço para o comportamento da Vale
Mariana-Brumadinho apenas revelam nosso atraso social, nossos políticos corruptos e empresas tão grandes quanto irresponsáveis. O que vi aqui é, infelizmente, mais do mesmo. Um Brasil feudal, abandonado e bonito, por enquanto, por natureza.”
Os bombeiros
“Hoje pude trabalhar documentando o esforço absurdo dos bombeiros em busca de sobreviventes ou, infelizmente, de corpos. Sob uma grossa armadura de lama encontrei jovens. Enfrentam o caos sem questionar o porquê da situação. Treinados para cumprir a missão, arriscam a vida.
Organizados e bem treinados. Quando cheguei estavam em uma rara pausa para beber água e isotônicos. Com a delicadeza de quem está na cozinha de casa, tomavam cuidado para nada cair ao chão. Nenhuma embalagem esquecida, nenhum copo de plástico deixado, nada. Tudo cuidadosamente colocado em sacos de lixo para serem retirados da natureza. Em meio a um dos maiores acidentes ambientais do planeta eles não estavam ali para contribuir com o caos.
Comecei fazendo um retrato de cada, rapidamente e com a ajuda deles – improvisamos um rebatedor – e logo eu já estava “enturmado”. Lembrou da minha época de infantaria que até hoje me ajuda quando enfrento situações limites como este “acidente”. Ofereci água fresca que tinha. Depois ofereci a água do meu cantil. Agradeceram e não aceitaram esta última oferta. É a tua água, você vaiprecisar. Lembrei-me pulando com 19 anos em uma trincheira e o cantil batendo onde não poderia bater! Desde lá desconfio de cantis mas não os dispenso em longas jornadas no meio do mato.
Terminando a pausa para descanso eles invadiram a movediça lama. Pude ver alguns caindo, outros se arrastando, para chegar à outra margem onde localizaram “indícios”. Nem eu, nem você e nem eles gostam destes termos. Mas precisam ser usados. “Indícios” seria a possibilidade de mais um corpo ou de algum fragmento. Não quero explicar mais.
Na volta acompanhei o grupo em uma nova missão, adentrando uma fazenda onde presenciei a lama encostar em uma plantação de alfaces. Descrito assim sei que nada significa. Mas a imagem, garanto, é melhor. E quem me deu o “bizu” da foto? Um tenente dos Bombeiros que disse amar fotografia. Bom olho!
Invadiram a lama, se reuniram a minha frente e chamaram o apoio aéreo para a extração. Muitos helicópteros no ar, uma extração de tropa à minha frente feito pelas aeronaves do exército, da polícia rodoviária e da polícia civil. Uma cena de “Apocalipse Now”.
Foram todos, menos eu que segui sozinho até meu Jeep. Pela primeira vez em dias vi algum Brasil funcionar. Sem esse papo de militarismo ou não militarismo. Apenas porque debaixo da lama encontrei pessoas vocacionadas ao bem, como tantos e tantos trabalhadores que hoje estão soterrados.”
Soldado Dias
“Nome de Guerra.
Olhei para ela e perguntei: Teu nome de guerra é Dias? Uma pergunta sem cabimento pois a tarja em seu uniforme já me dizia isso. Porém, no meio da lama a retórica de aproximação para um retrato se torna quase infantil. Mas, de alguma forma, depois de tantos e tantos corpos, encontrar na lama um ser vivente e bonachão como eu causa em todos uma positiva estranheza.
Pergunto de onde são. México, Rio de Janeiro, Manaus, Quitandinha – sim, encontrei alguém de Quitandinha em Brumadinho. Apresentações feitas lanço o convite para um retrato, ali, posado, clássico, objetivo e que documente nosso encontro em meio ao caos.
Dias foi a última. Carioca. Mulher. Bombeira. Lembrou-me a mitológica figura de Maria Bonita, não sei explicar por quê. Talvez por sua beleza e forte presença dentro do grupo. Atrapalhei menos do que costumo atrapalhar. Se embrenharam mata e lama adentro por um caminho que meu corpo por meio do bom senso – e das insistentes recomendações de Dona Nohêmia, minha mãe,- preferiu não seguir. Tão rápido quanto o encontro se deu a despedida.”
Sacrifício e dor
“Guerras são vencidas quando as evitamos. Brumadinho parecia um campo de batalha onde um breve armistício permitiu recolhermos os mortos. Nosso inimigo é poderoso pois suas armadilhas foram tramadas e executadas por anos.
Cada pequeno distrito, cada grande cidade, cada vila ou bairro em Minas dorme sob os braços do inimigo. Cada habitante torce por seu humor, por seu sono, para que ele não acorde no meio da noite e engula novamente Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo. Que não rasgue, como seda, o Córrego do Feijão. Que não vomite sua entranhas de ferro sobre o Rio Doce ou o Paraopeba.
Aconselho meu irmão que durma em silêncio para não acordar a besta fera. Ande em passos lentos, leves, para não alimentar seu mau humor. Coma do pão que ele lhe serve todo mês e mesmo que não te sacie agradeça-o pela gentileza de sua escravidão. Porque assim, quem sabe assim, tenha cova mais ancha que a lama.
P.S: Na foto 22 o tenente Maycon Cristo e o Soldado Márcio. Condolências ao Soldado Márcio cuja mãe morreu de câncer quando ele voltava de Brumadinho para São Paulo. Nas palavras do tenente Maycon: ‘Com a mãe no leito de morte ele foi ajudar desconhecidos! Eu comando uma tropa de heróis.’
Meu sincero pesar.”