O resto é ruído

Conheceu Murilo na infância. Um tipo discreto de criança, mas difícil de esquecer. Magra, de lábios finos, pele amarelada, silenciosa como um descampado. Eram vizinhos e, na medida em que Murilo permitia, amigos. Isso porque Murilo tinha também um problema de dicção incorrigível – terrivelmente gago. Um distúrbio emocional – diziam os adultos. Era horrível. Ele mal conseguia trocar uma ou duas sentenças com alguém e simplesmente fugia de telefones. Aquele tipo de aparelho, por alguma trapaça tecnológica, parecia amplificar o problema a índices absolutamente impraticáveis. Ele trepidava em um simples “alô”.

Até certo ponto – até o ponto em que uma criança pode ter empatia por outra, não sei exatamente qual – ele sofria com Murilo. Sabia o quanto aquilo o angustiava, chapinhando nas sílabas, só conseguindo seguir adiante com muito custo. E suportando o riso das crianças, porque nenhum outro recorte etário pode ser igualmente tão cruel, a humilhação diária. Daí, preferia o silêncio, uma espécie de fortaleza. Ou uma prisão sem grades, mas com eficiente isolamento acústico – a cabeça fervilhando de sons, ideias, palavras que se perderiam no cadafalso da língua.

A última imagem que tinha de Murilo também era quieta, uma espécie de daguerreótipo de silêncio. Certo dia, já crescido, ele resolveu amanhecer pendurado pelo pescoço ao chuveiro elétrico, os pés metidos em meias brancas encardidas roçando de leve o chão. Um urro, um urro gutural, assustador, animalesco, ricocheteou pelas paredes frias. Mas depois foi a quietude funda, a absoluta ausência de ruído, o corpo de Murilo pendurado, só, envolto em silêncio, como se estivesse mergulhado num grande galão de substância láctea.

Bia, graças a Deus, disse algo, e interrompeu as lembranças dele. Olhou para fora, pelo grande vidro da janela daquele café de esquina. Dia frio, com cara de sábado à tarde. Talvez porque fosse de fato sábado à tarde, atentou de repente. Um sol que havia resolvido dar o ar da graça depois de dias e dias de uma chuvarada sem fim. E ele teve a impressão de que lá fora o ar estava mais transparente. Ergueu um pouco o zíper do casaco. Inverno, estamos (mais ou menos) vivos, pensou, mas não conseguiu lembrar quem havia escrito aquilo.

Bia esticou os braços e entregou pra ele um embrulho bem feito. Cansado, deixou o pacote de um lado, na mesa.

– Obrigado – disse.

– Abre.

– Depois eu abro.

– Abre – insistiu ela, os lábios se esticando num sorriso para deixar à mostra uma arcada dentária irrepreensível, os olhos verdes de gata reluzindo. – Eu quero ver a sua cara.

Começou a abrir o pacote, mas as unhas estavam curtas demais para descolar a fita adesiva.

– Rasga – sugeriu Bia. – Dá sorte.

Olhou para ela, dando um risinho, enquanto puxava o papel com força – e o embrulho se rasgou com um ruído alto e desagradável. De chofre, a imagem de Murilo voltou rapidamente à memória, como um peixe que vem à tona por um instante para depois tornar a mergulhar. Quase se esquece do presente: uma camisa, azul como o céu de inverno.

– Você fica tão bonito de camisa – comentou Bia. – Principalmente essas, de cor clara.

– Obrigado, Bia. Muito obrigado. Mesmo. Gostei muito.

– Feliz aniversário, seu Coisa – ela gracejou, enquanto pegava o celular. Correu os olhos pelo aparelho, deu alguns toques na tela e então ofereceu a tela para ele. Que leu. Um show, de um cantor que eu gostava, aquela noite, em um lugar que ele não gostava nem desgostava, porque desconhecia. Desconhecia muita coisa há muito tempo.

– Você gosta dele, né? – ela quis se certificar.

– Gosto.

– Vamos?

– Bia, eu tou cansado.

– Ah, não. Vamos sim – ela decretou. – Vamos sim. Espairecer. Porque essa cabecinha – ela disse, enfiando os dedos em seus cabelos, sacudindo de leve sua cabeça –, essa cabecinha anda pensando demais.Bia. Sempre Bia. Depois que Murilo cometeu aquela canalhice, ela sempre estava ali, pra aparar as coisas, no caso de ele decidir sair pela janela. E pensar que antes ele a odiava. Tanto que se alguém, naquele tempo, tivesse perguntado o que se metia entre Murilo e ela, além da gagueira, teria respondido, sem nem mesmo pensar: “A vaca da Beatriz”.

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