Os rouxinóis do apocalipse

Abro a porta de vidro, avanço pela varanda. Um sol de rachar. Algumas mesinhas de metal, pessoas aqui e ali, falando baixo. Me sento diante de uma dessas mesas e acendo um cigarro, aliviado. Depois dos discursos bajulatórios lá dentro, no evento literário em homenagem a uma poeta que não vai além das velhas imagens melancólicas da natureza, conversei com amigos e conhecidos. Fazia muito calor, eu ouvia um por um com resignação, meio aflito. Falava com esforço, sentindo as palavras secarem na minha boca. Uma senhora aproximou tanto o rosto do meu que fiquei vendo sua língua pular entre os dentes, sem ouvi-la. Quase no fim do martírio, o jovem poeta barbudo bateu no meu ombro e tive que firmar as pernas, de tão tonto.

Estou no segundo andar da Biblioteca Palácio Galveias. Arquitetura setecentista, a antiga beleza aristocrática dos palácios, que faz a gente andar apequenado. A vista da varanda abarca todo o jardim, na verdade um gramado cercado de muros brancos, com algumas árvores em volta. Ali, na grama, dois meninos jogam futebol. Um grupo de rapazes conversa em círculo, de pé, rindo de algo que o mais alto deles imita. Me concentro no casal de adolescentes que se abraça no fundo do jardim. Os dois estão sentados um de frente pro outro, de pernas cruzadas, o abraço é complicado. Mas eles não se largam. Lembro que um dia eu já fui assim. Me sentava no chão, passava horas ao sol com amigos e namoradas, protelando compromissos leves, estudar para a prova, jantar com a família. Em algum momento troquei o chão pelas cadeiras e caí nesse sonambulismo dos compromissos sociais.
Na mesa mais próxima de mim, há um velho quase careca, barrigudo, veste uma camisa polo bege enfiada numa calça azul-marinho. Nos tempos da ditadura militar, quando eu era criança, ia para a escola com uma calça igual à dele. A gente chamava o tecido de tergal. Todos os alunos usavam calça azul-marinho de tergal, camisa branca, tênis preto ou azul. Até hoje associo essa calça a cantar o hino nacional bem cedo, enfileirado no pátio da escola, um pouco nauseado pela ordem opressiva e pelo canto sem sentido, logo depois do café da manhã. Nucas de alunos robotizados à minha frente, professores nos vigiando. O lábaro que ostentas estrelado.
O tal velho conversa com uma senhora de cabelos longos, muito negros. A franja perfeita da mulher, cortada bem no meio da testa, enquadra o rosto moreno, que tem um tom esverdeado de hindu. Junto deles está um rapaz de uns dezoito anos. Arcado sobre o celular, cotovelos nas coxas, ele mal ouve o que dizem os mais velhos.
– Não trato por você nem as pessoas mais velhas do que eu nem aquelas que não conheço, diz o velho.
A mulher olha para as pessoas espalhadas no gramado lá em baixo. Os seus olhos estão velados por uma mistura de constrangimento e ousadia. Ela balança a perna cruzada sobre a outra:
– É remar em vão, doutor Vaz.
– O meu pai dizia: “O você fica à porta da rua! Você é estrebaria!”. Foi esta a educação que recebi.
– São os tempos, doutor, não há o que fazer.
– A verdade é que não aprecio ser tratado por você. Aceito, se quem assim se me dirige é alguém que me é próximo, da minha idade ou mais velho do que eu. Tolero, se esse alguém é pessoa pouco letrada, simples, humilde, para quem essa forma de tratamento é, por assim dizer, cultural… Foi esta educação que eu e muitos portugueses da minha geração recebemos.
A mulher dá um tapinha nos cabelos, cede ao espírito ranzinza do doutor:
– O pior é o bocê.
Ela ri de si mesma, mas o velho não move um músculo. Sem olhar para a mulher, muda para uma cantilena quase lamentosa.
– Pode ser muito bonito e até carinhoso o você, num diálogo entre brasileiros, mas… nós estamos em Portugal! A boa educação e o civismo se estão a perder na razão inversa do desenvolvimento tecnológico.
A mulher troca as pernas cruzadas. O rapaz olha para mim por um segundo, talvez pra ver se sou brasileiro. Deve ter concluído que não sou, mergulha de novo no celular. Então ele está atento à conversa? Não seria surpresa, o mundo agora está cheio de jovens polifásicos, capazes de dividir a atenção entre o mundo real e o virtual numa espécie de estoicismo.
Resolvo descer para tomar alguma coisa. O clima de hoje não está normal, será que os outros não sentem o bafo bestial do caos?

No quiosque do jardim, bebo uma imperial. Vejo aqueles três na varanda onde eu estava. Daqui, são bonequinhos encaixados na maquete do prédio. Os namorados do abraço difícil foram embora. Surgiram duas garotas, estão deitadas de costas na grama, lendo juntas alguma coisa num Kindle. Penso na relação sutil que o doutor Vaz estabeleceu entre os brasileiros e a tecnologia. É que nós não invadimos Portugal só de avião. Entramos principalmente pela internet, com uma produção acachapante de vídeos de música, esquetes de humor, tutoriais, programas de influencers etc. Muitas crianças e adolescentes portugueses já falam você, amei, cara, galera. Daí esse medo de pessoas como o doutor Vaz de que haja um movimento reverso: a língua do colonizador sendo colonizada pelo colonizado. E olha que os nossos métodos, doutor, são bem mais brandos: em vez de cruz e espada, usamos o TikTok.

Estou sentado à sombra, mesmo assim faz um calor estonteante. Peço a segunda imperial. Felizmente o sol está se pondo: a linha entre a luz vermelha e a sombra sobe lentamente o muro branco à minha frente. Procuro no celular algum esclarecimento sobre o clima infernal. Leio numa matéria que a Europa é o continente que mais esquenta. Em 2022 já chegamos a 2,3 graus Celcius acima dos níveis pré-industriais. Secas nas regiões dos Alpes e Pirineus, incêndios por toda parte, crise energética. Procuro outras matérias. Nenhuma delas associa as emissões de carbono ou a desertificação à fome pelo lucro.
Enquanto isso, a poeta lá falando em brisas de abril, tordos na relva. E o doutor Vaz empenhado na Cruzada dos Pronomes… Vai ser assim o apocalipse? Discutiremos o nosso umbigo enquanto a casa pega fogo? Imagino o diálogo final:
– Você sabia que o mundo está acabando?
– “Você” é estrebaria. Senhor, por favor.
– Nunca mais ouviremos os rouxinóis, senhor.
– Thou wast not born for death, immortal Bird! Sabia que Amy Lowell achava que Keats, nessa Ode a um Rouxinol, não se referia ao pássaro que cantava naquele momento, mas à espécie?
– Estamos morrendo…
– Vamos punir os responsáveis.
– Agora é tarde. Eles fugiram para Marte com o Jeff Bezos e o Elon Musk.
– Mas lá não tem árvore nem brisa!
– E alguma vez eles se importaram com isso?
– No hungry generations tread thee down… Sublime.

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