Levou tempo

Levou tempo até eu conseguir escrever sobre você. Levou tempo até eu conseguir não submergir a tua imagem em algum fosso escuro e profundo, até eu poder concentrar minha atenção nos pensamentos de onde, aos pontapés, eu te expulsava, metendo cadeados à porta. Levou tempo até as mágoas se dissiparem. Levou uma vida inteira. Levou duas.

Levou tempo até eu conseguir penetrar os subterrâneos da nossa relação e desencavar dali algum entendimento, ainda que precário. Uma história nunca poderá ser compreendida plenamente. Aos que presenciam os fatos, falta-lhes o privilégio da visão em perspectiva; aos que confortavelmente instalados analisam os fatos em perspectiva, falta-lhes a vertigem da visão de dentro do olho do furacão; aos que presenciaram os fatos e além disso os consideram em retrospecto, tempos depois, falta-lhes a medida do olhar que tinham à época e que foi irrecuperavelmente transformado pelo furacão. As experiências nos impedem de reviver as experiências. Memória não é replay.

Levou tempo até eu sentir que o teu silêncio tinha o peso da gravidade de um buraco negro. Levou tempo até eu compreender, sem que nada pudesse fazer para amenizá-los, as culpas e os remorsos que você carregava, pesados, no peito. Tuas faltas foram muitas, os pecados foram graves, e seria mentira ou autoengano dizer que não havia nada para perdoar, nada do que se arrepender.

Levou tempo, mas foi ainda em vida que eu te perdoei, embora só depois de ter imposto a você a sentença inflexível de minha ausência, embora fosse tarde demais para qualquer tentativa de reaproximação, e embora jamais te tenha dito. Talvez tenha sido essa a maior das minhas crueldades: levou tempo até eu parar de te culpar, até eu conseguir te perdoar, mas eu nunca te contei. É certo que você também nunca me pediu perdão, talvez por medo da resposta, e tudo ficou sem se resolver.

Levou tempo até eu compreender que toda mágoa um dia será passada, e assim passada, pelo filtro que é o tempo, talvez se purifique, e dela apenas fique pó… e água salgada. Queria ter te falado que as mágoas já se haviam consumido, que por simples senso de autopreservação eu já as havia transformado em pó. Mas eu não falei.

Levou tempo até eu romper a distância física que impus. Dez anos sem nos vermos (ou umas vinte frases), embora eu saiba que você e teu orgulho demorariam muito mais. Você era forte. Você era um monumento.

Levou tempo até eu conhecer tuas fraquezas. Elas são, hoje, reconhecíveis como o teu jeito de andar, como a tua silhueta, a tua tosse, o teu boné, o teu cheiro de cigarro, serragem e solidão. Você foi a pessoa mais forte que eu já conheci. Você foi a mais fraca.

Levou tempo até você descobrir por que aos 5 anos eu fugi de casa e só fui ser encontrado na beira do lago. Levou tempo até eu descobrir por que aos 40 você fugia. Levou tempo até eu parar de esperar pela tua volta.

Levou tempo até eu me surpreender com a tristeza funda da poesia que a vó Preta, tua mãe, um dia disse de improviso. Você saiu de bicicleta para ir no bar, tua camisa aberta balançando ao vento na descidinha de casa, e a voz da vó: veja a camisa dele, tá te dando tchau.

Costumam chamar a leve e agradável vertigem do primeiro gole de “estar alegre”. ¿Como estar continuamente alegre pode ser uma doença? Levou tempo até eu conseguir ver: você trabalhava na ferrovia, fazendo medições, passava o dia andando na linha, geômetra, portando instrumentos de milimétrica precisão. À noite chegava em passos tortos, trem prestes a descarrilar, resfolegando, rosnando, apitando. Levou tempo até eu aceitar que era uma doença o que chamávamos de ruindade.

Levou tempo até você compreender que doenças precisam ser tratadas. Sinto pena por ter levado tanto tempo assim, quando era tão claro que mais dia menos dia o trem veloz sairia dos trilhos e arrasaria tudo o que estivesse por perto.

Levou tempo até eu interromper o ciclo paralisante dos porquês: por que tinha de ser assim, por que diabos você era daquele jeito, por que comigo. Para sobreviver, foi preciso primeiro (como na Oração da Serenidade) aceitar as coisas que não podem ser modificadas, depois sentir vergonha do clichê palerma, do mau gosto indigente que é culpar o pai, e só então prosseguir e tentar fazer do inapagável alguma coisa melhor, sem que me definissem as ações que eram tuas. “Há uma rachadura em tudo, é por ali que a luz entra”.

Levou tempo até eu conseguir te dizer um não: foi num sonho. Você agora é presença recorrente nos meus sonhos, você que neles igualmente nunca dava as caras. Meus lábios estavam colados, eu fazia força para abri-los. Na agonia de um grito, no espasmo de um não, eles rasgaram-se e sangraram. Foi esses dias esse sonho. Levou tempo até eu não sentir mais medo de você, até eu descobrir que não havia motivo para sentir medo, até eu descobrir que você também sentia.

Levou tempo até eu descobrir por que você sorria tão pouco. Levou tempo até eu descobrir por que prefiro escrever humor. A filosofia do humor diz que rimos para zombar da morte, ao menos por um momento; eu rio e tento fazer rir porque em nossa casa os sorrisos eram confiscados. A fruta não cai longe do pé. É verdade. Comprovei o fato esses dias, quando derrubei um coco em cima do dedão.

Levou tempo até eu decifrar que meu ateísmo foi uma forma de te matar. ¿Por que eu haveria de me submeter ao jugo de outra autoridade esmagadora e masculina, de outra supervisão implacável, ubíqua e silenciosa? Se uma era ruim, duas, pior; antes nenhuma. Que ingenuidade. É tão mais fácil matar um deus.

Levou tempo até eu sentir alguma coisa parecida com o sentimento detestável da piedade. Foi quando você caiu doente pela primeira vez (de tua segunda doença), em 2014. A causa foi menos a tua doença, da qual você se ergueu ninguém sabe como, e mais o que você me disse no leito da UTI, meio grogue, o semidelírio deixando escapar teu primeiro erro de cálculo: “Quem diria que uma doença ia unir a gente”. Teria sido bonito o roteiro cinematográfico encontrando tal bom desfecho: uma doença separa pai e filho, outra doença, vinte anos depois, os reaproxima e os redime, as mãos se enlaçam, a música triunfal retumba, a imagem fecha-se aos poucos. Tela preta: o roteiro preferido pela realidade é o anticlímax. Há muito tempo estava afastada de nós qualquer possibilidade de redenção, e a doença nada poderia fazer a esse respeito.

Levou tempo até eu acreditar que alguma preocupação comigo você tinha, porque às vezes realmente parecia o contrário. Você me levou junto no bar, sábado à tarde, tinha uns trocados para uma cachaça e para um doce. Eu pedi o doce, com os olhos. Você tomou duas cachaças. Vai que com o doce eu ganho junto uma cárie, com que cara você ficaria. No entanto, você um dia construiu para mim uma carteira escolar. Devo ser uma das poucas pessoas no mundo que tiveram no quarto uma carteira escolar particular para fazer as tarefas, mais bonita que qualquer outra. Escrevi meus primeiros textos ali, cartinhas para namoradas, uma crônica elogiada pela professora do Ensino Médio, letras de música para a banda que você nunca viu tocar. Minhas primeiras criações se deram sobre o pouco que você criou, não sobre os teus destroços.

Levou tempo até eu desejar que você conhecesse a minha casa. Levou tempo até eu desejar que você conhecesse a minha mulher. Levou tempo até eu desejar que você conhecesse a minha vida. Você nunca conheceu nenhuma das três. Nenhum movimento daí. Nenhum movimento daqui. Só o movimento obstinado dos ponteiros.

Levou tempo até eu compreender a íntima relação entre o torneado minucioso das tuas madeiras e o minucioso torneado da sintaxe, entre a montagem dos teus móveis, peça a peça, e a montagem, peça a peça, dos meus textos. “Teu pai é caprichoso, teu pai faz tudo bem feito, teu pai é um artista”, ouvi tantas vezes. Levou tempo até eu compreender não ter sido apenas silêncio o que aprendi de você, eu que não tenho tua cor, teus olhos, tua voz, teus trejeitos, tua caligrafia, tua firmeza, eu que nunca me reconheci em você. Mas no inquebrável do teu silêncio havia preceitos: a pressa é autotrapaça, os frisos de uma porta de armário levam tempo, um parágrafo leva tempo; uma cadeira não é só para sentar, ela precisa ser bonita, uma frase não é só para dizer, ela precisa ser bonita. Eu nunca te mostrei meus livros, eu nunca soube se você sabia que eu havia escrito livros. Entre a minha boca e a presunção da frase “Eu escrevi um livro” havia a tua meticulosidade, o teu escrúpulo, a tua artesania, a tua inteligência. Nunca aprendi a segurança do teu corte, a convicção da tua martelada, a infalibilidade da tua trena. É só tateando, hesitante, que eu consigo seguir em frente. ¿E se os frisos e os torneados das minhas frases não estivessem bons? Levou tempo até eu me recordar do dia em que você chegou da marcenaria com um grande corte no dedo. Levou tempo até eu aprender que você também precisou aprender. Se mais analogias fossem necessárias, diria: as coisas que eu mais amo são feitas das coisas que você mais amou, livros são feitos com madeira.

Levou tempo até eu descobrir que você escrevia. Tomei um baque quando encontrei na tua casa um caderno escrito “Autobiografia”, um diário dos meses de internamento nos Alcoólicos Anônimos, para onde você só foi depois do fundo do poço, depois do empurrão e a queda da vó, depois de haver perdido absolutamente tudo. Tem uns erros de ortografia ali (¿não é isso que você faria, primeiro apontar os erros?), mas o texto inteiro é de uma clareza irritante, e você estudou apenas até a terceira série. “Aos 8 anos ajudava meu tio Emílio nas construções e na lavoura (…) Ao começar a receber meus vencimentos, comprava cigarros e refrigerantes. Após alguns meses, resolvemos fazer um piquenique, no qual levamos cervejas. Aos 15, parti para bebidas fortes. E foram 31 anos de destruição, medo e vergonha, rejeitado por pessoas que eu sei que me amavam (…)”. Dois a um para você. Eu jamais tive habilidade de construir armários.

Levou tempo (nós que nunca nos segredamos nada) até eu ir na tua casa te contar uma dor, compactada numa frase titubeante e só pronunciada porque era forçoso te contar, porque mudos e eloquentes imperativos determinaram que essa dor também te dizia respeito, quando o que eu preferia era tê-la silenciado para sempre: “Queria ter trazido uma notícia boa, mas não deu tempo, nossa gravidez foi interrompida.”

Levou tempo até eu conseguir te escrever uma crônica, ela está num livro, ela é sobre o Rico, o periquito que você me deu. Levou tempo até eu conseguir te escrever um poema, ele é breve como nossos encontros sempre breves, pouco como nossa convivência sempre pouca. Levou tempo até eu conseguir, nesse poema, te segredar uma segunda dor. Levou tanto tempo, pai, que quando dei por mim o tempo já havia te levado.

Folha seca dentro do livro
O pai morto abraçado
Pelo filho.

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