Meu bunker de infância

Quando eu e meu irmão éramos criança, a gente tinha um bunker.
Sim.
Tá… talvez não fosse um bunker “BUNKER” no sentido estrutura, mas era um “bunker” no sentido segurança.
Era o quarto dos fundos da casa, e ele era 100% a prova de perigos.
Como um bunker.
Eu explico:
Certo dia, na Lapa (cidade onde eu nasci), aconteceu uma tempestade muito violenta, com vendaval doido, trovões e muita destruição.
Eu tinha uns 6 ou 7 anos (o que significa que fazem mais de 25 anos… eu sei, eu sei, olhando pra essa carinha meiga ninguém, mas é verdade).
Continuando… eis que esse vendaval “mutho loco” aconteceu de madrugada.
Euzinha, estava dormindo como uma princesa, quando meu pai entrou no quarto, me arrancou da cama e aí eu vi que o mundo tava acabando enquanto eu dormia.
Dava pra ver das janelas as telhas das casas vizinhas voando, um som agudo entrava na casa, criança gritando na casa do lado, todo mundo morrendo de medo, um pesadelo.
Me senti a própria Dorothy indo pra OZ e encontrando com a bruxa má do leste.
Só que sem a parte de OZ.
Nem a parte da bruxa.
Só com a parte do vento e do medo.
Um minuto depois de eu ser tirada da minha caminha fofinha, a janela do meu quarto quebrou com alguma coisa que voou nela, e em vez de fofinha, minha cama ficou cheia de cacos de vidro.
Estávamos em casa eu, meu irmão, meu pai, minha mãe e Pingo (interpretando Totó – apenas pra quem tem referência). Todos MORRENDO DE MEDO (incluindo o cachorro).
O problema é que em casos assim, não tem muito o que fazer. Só esperar passar e depois olhar o estrago.
Só que era muito vento e a gente tava com muito medo.
Até que meu pai gritou: Todo mundo pro quarto dos fundos porque lá é mais seguro.
É – MAIS – SEGURO.
Pronto. Ganhamos um bunker.
Ficamos ali, os quatro (cinco com o Totó), fechados no quarto, olhando pela janela, enquanto o mundo acabava lá fora. Lembro de ter visto nossa piscina de plástico (daquelas com canos de metal na estrutura) indo parar no telhado do vizinho. Mas de boas. O quarto era SEGURO.
É – MAIS – SEGURO.
Fim da primeira parte
(pode ir pegar um cafezinho que eu espero)
A tempestade passou, o sol nasceu, as coisas estragadas foram arrumadas, vida que segue.
Só que desde então, aquele quarto virou sinônimo de segurança pra mim e pro meu irmão.
Então simplesmente a gente corria pra lá, fosse o que fosse o perigo.
Não foi nada combinado.
Era natural. Uma regra de segurança extrema que nosso inconsciente criou. Criou e seguiu, por muuuuitos anos.
Vento? Quarto dos fundos.
Trovão? Quarto dos fundos.
Algum estranho bateu no portão? Quarto dos fundos.
Tem um passarinho batendo o bico na janela e parece que é um assassino em série vindo te matar? Quarto dos fundos.
Ameaça alienígena? Quarto dos fundos.
Fantasmas? Isso mesmo. Quarto dos fundos cantando padre Marcelo Rossi.
E tinha um ritual, sabe? Normas. Você não podia simplesmente correr pra lá. Existiam responsabilidades.
Era sua obrigação levar consigo todos os seres viventes da casa.
Então se começava um vento mais forte, eu só olhava pro meu irmão e a gente sabia exatamente o que fazer: Lá íamos nós. Enquanto um corria catar o cachorro debaixo do braço o outro ia atrás da gaiola do passarinho e aí sim, quarto dos fundos.
Se algum amigo nosso estava em casa, eles ficavam MASOQUEQUETAACONTECENDOAQUI? E nós: relaxa, é que aqui é bem mais seguro.
É – MAIS – SEGURO.
Fim da segunda parte
(respira que tá quase acabando)
Agora passa a fita pra frente (por alguns aninhos – talvez uns 25 ou mais) pra chegar nos dias atuais. Estávamos eu e minha mãe na Lapa, mexendo em objetos antigos, quando a história do vendaval veio na mente dela e a gente começou a falar disso… como ele foi forte e como ficamos com medo, e como encontramos o leão e o espantalho e (não, pera, essa parte foi a Dorothy…) e aí lembrei que sempre corríamos pro quarto depois daquele dia porque ele era o mais seguro.
É – MAIS – SEGURO.
Minha mãe riu.
Porque o quarto dos fundos era o mais seguro NAQUELE DIA. Especificamente naquele dia.
Apenas naquele dia. Entende?
Porque o vento estava vindo em direção ao outro lado da casa. Aí, todos os objetos que vinham voando atingiam o outro lado da casa.
Ele era o refúgio mais inteligente NAQUELE MOMENTO. E só.
Nada no mundo fazia dele o lugar mais seguro em qualquer um dos outros momentos em que ficamos com medo de ventos, e chuvas, e visitas, e fantasmas, e passarinhos bicudos.
Fiquei em choque.
Então… o nosso bunker não era o mais seguro?
OU ERA?
Naquele pequeno quarto da pequena casa na pequena cidade, eu tava a salvo.
Talvez a inocência seja uma estrada de tijolos amarelos.

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