O silêncio

As pessoas me enviam originais de livros por e-mail. Meu trabalho, como editor, é avaliar se esses originais são publicáveis. Vem de tudo. Alguns são tão ruins que nem sei o que dizer ao autor. Escrevo uma resposta breve e me despeço cordialmente. Outros entram na categoria dos razoáveis, e aí eu preciso ver se, com alguma lapidação, o autor poderia torná-lo mais interessante. Há os que são bons e estão praticamente prontos para a edição. Mas pode acontecer de eu me deparar com um texto excepcional, um texto que salta da página, belo, forte, luminoso – um golfinho literário. Nessas horas eu me ajeito na cadeira, olho em volta como se quisesse contar a alguém o que estou vendo. Não é todo dia que a gente vê um golfinho. É um momento tocante. Na verdade o editor independente, quando descobre um grande texto, chega a ficar comovido. Ele se enternece com o seu trabalho sofrido, que afinal não é tão ruim assim. Valeu a pena ficar em feiras de livros pescando os leitores que não vieram só comprar o último livro do escritor pop. Valeu a pena ter paciência com autores que se consideram o novo Fernando Pessoa e não entendem por que o mundo não se ajoelha aos seus pés. Valeu a pena ouvir o bom livreiro antigo, decadente e ranzinza, reclamando das “lojas” que agora vendem livros como se fossem sapatos. Valeu aguentar os gerentes dessas lojas torcendo o nariz para a obra de um verdadeiro escritor, porque ela não venderá como os sapatos da moda. Valeu, valeu a pena: ali está o golfinho. Ele foi visto, seu milagre não voltará desconhecido ao abismo que o criou. Talvez poucos saibam apreciar a sua beleza misteriosa, mas, graças ao trabalho do editor, o mundo saberá que ele existe.

É raro, mas acontece. Comigo, pelo menos, aconteceu apenas duas vezes em dez anos nesta área. A última foi há uns meses atrás. Era o romance de um escritor brasileiro que, como eu, vivia em Lisboa. Pela breve biografia que me enviou, soube que não era jovem e nunca havia publicado nada. Mas era evidente que, na invisibilidade do anonimato, havia desenvolvido um estilo todo próprio, que consistia numa prosa árida ventilada às vezes por uns sopros de lirismo. Me lembrou Mario Benedetti, com momentos de desassombrado absurdo kafkiano. Comemorei a aparição em segredo, gozando por antecipação a reação que ela causaria nos leitores mais exigentes. A história era boa, mas o que sobressaía ali era a linguagem, o modo como o narrador explorava o vazio do protagonista num mundo fútil e volátil. E aqui preciso fazer uma digressão: uma vez uma senhora de Cascais me disse que sua vida daria um livro. Sem dizer nada a ela (porque me pareceu uma dessas mulheres ricas, tolas e impermeáveis a quem não adianta dizer nada), pensei que essa é uma suposição recorrente de quem não sabe ler bem. Qualquer vida dá um livro. A vida de uma mosca dá um livro. O que importa é a linguagem, o olhar que conformou o estilo. Joyce escreveu uma obra-prima sobre um dia qualquer na vida de um grupo de pessoas. Ulysses é um prodígio do estilo. Escrever bem não quer dizer contar uma coisa extraordinária (embora isso possa fazer parte da boa narrativa). Escrever bem é contar extraordinariamente uma coisa qualquer, pensei, enquanto a senhora me revelava a banalidade de suas “aventuras”.

Voltando ao segundo golfinho. Dias depois de descobrir aquele texto, liguei para o autor. Mostrei minha admiração pelo livro que ele havia escrito, ele falou muito pouco, mas marcamos um café. No dia combinado ele teve algum problema, remarcou nosso encontro. Depois remarcou de novo. Numa tarde fria e chuvosa, finalmente fui vê-lo. Era no café que fica nos fundos da livraria Bertrand do Chiado. Pedi um expresso (“Café cheio”, corrigi, para falar como os portugueses), me sentei num canto e fiquei esperando.

O homem chegou com meia hora de atraso. Era um sujeito baixo, de uns quarenta anos. Sentou-se à minha frente, enfiou as mãos entre as coxas e me ofereceu o sorriso fixo de um boneco quase sinistro. Seus olhos vivos eram bolas de mercúrio, tremiam ao contato da realidade. Conversamos sobre Lisboa, sobre a beleza da cidade e o conservadorismo dos portugueses. Ele também havia saído do Brasil quando o fascismo tomou conta do país. Tirei o computador da mochila e li alguns trechos do livro dele. Repeti algumas frases com prazer. O homenzinho ficou satisfeito, coçou o nariz, mas não disse nada. Foi ao banheiro e, quando voltou, me disse que havia sido dono de uma empresa de eventos em São Paulo. Nunca mais queria fazer aquilo. Durante anos havia escrito à noite, depois do trabalho infernal. Trabalhar era infernal, o trabalho desconfigurava a alma das pessoas. Para sair “desse materialismo estúpido” (ele fez um gesto com a mão mostrando o que estava à nossa volta), a humanidade precisaria trabalhar muito menos. Ainda mais no Brasil, onde ninguém respeita o horário de trabalho. Eu quis voltar ao tema do romance dele, mas o escritor preferiu falar sobre o ódio. Me disse que as pessoas agora se odiavam civilizadamente, no limite da barbárie, porque no fundo odiavam a civilização. Era por isso que o fascismo ia de vento em popa. Me contou que estava em Portugal com a mulher e o filho para “mudar de ares”, embora isso não adiantasse muito. Não era possível fugir da globalização do vazio. Eu gostava cada vez mais do sujeito. Era honesto, áspero, não se deixava levar pelo nariz. Fiquei entusiasmado:

– Vamos publicar o seu livro?

Ele pediu água mineral à garçonete. Cruzou as mãos sobre o tampo negro da mesinha. As bolinhas de mercúrio ficaram duras.

– Para que publicar um livro?

Fiquei quieto, aguardando a conclusão do raciocínio. Era a primeira vez que um escritor me perguntava isso. Ele percebeu a minha surpresa.

– As livrarias estão cheias de livros… O meu vai ser mais um entupindo as estantes.

Quis saber por que escrevia então. Ele ficou só me olhando. Continuei:

– Tudo bem, você pode gostar de escrever. Mas por que me enviou o livro?

Ele continuou a me olhar. Pediu desculpas. Achei que talvez estivesse com medo de perder a grandeza imaginária de autor desconhecido, ao se expor ao olhar alheio. Dali a pouco superaria esse medo e falaria sobre o contrato. Mas isso não aconteceu. O homem se desculpou novamente, meio embaraçado, despediu-se e foi embora. Nunca mais ouvi falar dele.

Às vezes leio de novo algum parágrafo do seu romance e me questiono sobre o direito que ele tem de esconder uma maravilha assim. Mas no fundo sei que não é isso que me incomoda. Todos os dias vou à luta para encontrar por aí um bom escritor. E lá em Lima ou Quioto outro editor faz a mesma coisa. Juntos, nós entupimos o mundo de livros. Mas eles não são necessários, eles não nos libertam do pesadelo da vida? Qual seria a vantagem de vivermos num mundo sem literatura, entregues à mera materialidade do drama? As boas narrativas, os bons poemas, eles, eles… eles são fundamentais! Eles sublimam a lama do cotidiano, fazem a gente refletir sobre miséria e injustiça, permanência e impermanência… desenvolvem espíritos críticos, esteticamente sofisticados, inclusivos. Ou o quê? Devíamos cruzar os braços como Bartleby, o escrivão de Melville, que vai ao trabalho para não fazer nada? “Eu preferia não fazê-lo”, diz Bartleby sempre que alguém lhe pede para agir. Isso é uma coisa irracional e, como disse Borges, “basta que um único homem seja irracional para que os outros também o sejam”. Até a tragédia é melhor do que o niilismo. Que a humanidade exploda de tantas palavras, o que não podemos, o que não devemos é ficar de braços cruzados. Podemos? Para quê?
Desde que o homenzinho se negou a publicar seu livro, penso no silêncio. O silêncio como resposta à gritaria geral. Penso na Elisabeth Vogler de Persona, do Bergman. Uma atriz que já não quer representar, falar. Uma atriz muda, considerada doente, que fascina e desespera Alma, a enfermeira designada para cuidar dela. Eu e aquele escritor somos Elisabeth e Alma. Mas eu, a enfermeira, sacudo a cabeça, entro na gritaria, represento aliviado o meu papel.

Outro dia fui assinar contrato com uma poeta de Açores. Ela estava animada, planejou o lançamento, quis saber como seria a distribuição. Lemos alguns dos seus poemas, falamos de Herberto Helder, Mário Cesariny, Manoel de Barros. Ao final do encontro, ela tirou uma foto comigo. Mas quando me mostrou a foto (nós dois sorrindo, naquele mesmo café da Bertrand), por um instante me lembrei do autor niilista. Era como se os seus olhos febris me olhassem do fundo escuro da imagem, pelas costas da nossa alegria, dizendo em silêncio:

– Para que publicar um livro?

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