Literatura é coisa de criança

O que sentimos e pensamos é muitas vezes bruto, ou cru, ou amorfo, ou vertiginosamente simultâneo, ou bruto e cru e amorfo e vertiginosamente simultâneo tudo no mesmo tempo e lugar. Mas temos um truque: através da lapidação e depuração proporcionadas pela organização linear da linguagem verbal, esses pensamentos e sensações encontram os meios de virem parar aqui fora, onde podem ser espiados.

Percebo, entretanto (e acredito não ser percepção exclusivamente minha), que nossa escrita e nossa fala nunca terão as mesmas dimensões, contornos e nuances daquilo que habita nossa alma, nossa razão e sentidos. É comum ouvirmos um “não era exatamente isso que eu queria dizer” ou “não tenho palavras para expressar o que sinto”. E isso porque não há plena coincidência entre o que externamos para a investigação, fora de nosso corpo, e o que nele é interno. Não existem traduções perfeitas, apenas aproximações. Às melhores, costumamos dar o nome de literatura.

Tentar descrever os efeitos de um pôr-do-sol em nossas retinas, em nossa pele, em nosso peito, e não alcançar. Mas, dessa congênita incapacidade de recriá-los em seus inefáveis matizes, tons, brilhos e saturações, gerar alguma outra coisa, alguma outra forma que, por ser-lhe tão oposta e ao mesmo tempo falar de si, mesmo o sol admiraria.

Cada linha da melhor literatura, desse ponto de vista, é como que uma expressão de fracasso, de impotência, de intraduzibilidade. Mas não importa, nesse quesito continuamos seguindo o conselho de Beckett, e tentamos de novo, fracassamos de novo, fracassamos melhor. O azul, ainda quando escrito pelos grandes mestres, não poderá nunca ser mais celeste que os céus de uma manhã gelada de inverno. Sobreviverá a eles, no entanto, à noite.

Assentada nas bases daquilo que estava lá, a literatura cria algo que nunca antes esteve. E talvez não seja outro o motivo de celebramos os autores que deram esse passo-além na terrível tarefa de elucidar-nos: dizer algo tão imprevisto, tão insólito, tão inaugural, que é como se o próprio Universo tivesse lhes fornecido uma procuração para falar em seu nome.

¿Mas será que tal honraria ficou a cargo apenas desses autores consagrados, desses versados anciãos cofiando a barba hirsuta em pose de sábio chinês? ¿Serão somente eles e elas os nobres e genuínos depositários dos segredos do fazer literário? ¿A criação artística pela palavra é matéria exclusiva dos eleitos, dos gênios, dos canônicos, dos que bancam a própria publicação? ¿É assunto restrito a gente grande, a gente adulta? Tenho uma hipótese, amparada por anos de empiria e extensa coleta de dados, seja dentro ou fora de sala de aula. É disso que tratará esta crônica.

Meu sobrinho, de 5 anos, tarde dessas chegou da escolinha contando que em sua turma entrou um menino com o mesmo nome dele. “Tem um outro eu na escola”, foi a forma filosoficamente literária que ele encontrou de relatar sua experiência inédita com um xará. Aos 5 anos, meu sobrinho expressou poeticamente uma concepção de língua que pode ser encontrada no Crátilo, diálogo platônico no qual Sócrates discute se os nomes são arbitrários ou se guardam alguma relação mais profunda com aquilo a que se referem.

Quando eu era criança, imaginei que dias nublados existiam porque o sol tinha ficado doente. E que aquele manto espesso e cinza recobrindo o céu era apenas o lenço no qual a estrela assoava seu solar nariz. Chamar A de B, nuvem de lenço, é a base das analogias e das construções metafóricas. Utilizando-as intuitivamente, pude chegar à óbvia conclusão de que chuva é coriza estelar e trovões são espirros.

Já adulto formado, numa aula que dei sobre neologismos, um aluno de 12 anos definiu a internet como ”tretódromo”. Outro escreveu ”desengravidar” para se referir a aborto, “desespirrar” para quando o espirro falha, e que a ciência que estuda o significado de ser mãe é a “sermãetica”.

No parágrafo final de um texto sobre memórias, Isadora, uma garota de 14 anos, ao lê-lo em voz alta, deixou pasmos professor e turma:

Quando eu era menor, sonhava em ser gente grande, mas não é tão bom assim. Tudo era mais simples quando novos sonhos nasciam a cada filme da Disney.

Num poema sobre futebol, Bruno Nogueira, 12 anos, marcou esse golaço de letras:

Quando gritamos gol
Ninguém tem cor
Ninguém é uma conta bancária
Ninguém é gay
Ninguém é diferente

No grito de gol
Você só sabe gritar
Abraçar quem tá do lado
Sem ver quem ou como o outro é

No grito de gol
Ninguém despreza o outro

No grito de gol
Temos amor, emoção
E o que seria a sociedade perfeita
Sem julgar pelo outro ser diferente

Grite gol durante a vida.

Em outra ocasião, numa aula sobre microcontos, foi a vez de uma aluna de 12 deixar perplexo o autor-professor sabichão aqui. Escreveu ela:

Nunca acreditei em espíritos, mas agora sei que existimos.

Na mesma turma, após ler e comentar sobre cronistas que se alimentam de acontecimentos cotidianos e pessoais para escrever, pedi para que eles produzissem uma crônica nesses moldes. Nicolas de Quadros, também aos 12, escreveu uma intitulada “Ler é o melhor remédio”. Transcrevo, abaixo, a crônica dentro da crônica:

A maioria das crianças aprende a ler na escola. Comigo foi um pouco diferente.
Nunca pensei que seria grato a uma doença, principalmente se esta poderia ter facilmente me matado, mas esse é o caso.
Sempre fui e ainda sou um menino doente, e foi em 2010 que tive minha terceira pneumonia. Estava internado no Hospital Santa Cruz. Não tinha muita coisa para fazer, então minha mãe decidiu que era hora de eu aprender a ler. E eu realmente queria isso.
Primeiro aprendi o som das letras, depois, os sons delas combinadas e em poucos dias já sabia ler e escrever várias palavras e frases. Isso fez o tempo passar mais rápido e me ajudou a esquecer aquela situação.
Quando voltei para casa, comecei a ler meus primeiros de muitos e muitos livros.

Em abril de 2013, um dos maiores sucessos da Feira Literária de Bogotá foi um livro chamado Casa das estrelas: o universo contado pelas crianças. Durante dez anos, o professor Javier Naranjo, que também se encanta com as pepitas poéticas saídas da boca e pena das crianças, compilou as inusitadas definições que seus alunos davam a algumas palavras. Eis algumas das pequenas joias:

Adulto: pessoa que, em toda coisa que fala, fala primeiro dela mesma. (Andrés, 8 anos)
Mãe: mãe entende e depois vai dormir. (Juan, 6)
Paz: quando a pessoa se perdoa. (Juan Camilo, 8)
Igreja: Onde a pessoa vai perdoar Deus. (Natalia Bueno,)
Guerra: gente que se mata por um pedaço de terra ou de paz. (Juan Carlos, 11)

Este ano, tive a ideia de realizar o mesmo experimento com meus alunos, todos entre 12 e 16 anos. Os resultados são uma promessa de que o fogo de Prometeu nunca se extinguirá:

Alma: software dos humanos. (Nicolas de Quadros)
Aluno: aquele que oculta suas vontades para realizar a dos outros. (Matheus Silva)
Aluno: Pode dupla de três? (Abílio Batista)
Aluno: eu não fiz. (Gabriel Santana)
Amor: o que faz as pessoas se tornarem idiotas. (Ketlyn Lima)
Avó: mãe que compra na volta. (Mateus Vieira)
Céu: lâmpada natural que acende e apaga. (Guilherme Chibior)
Céu: para onde dizem que temos de ir a qualquer custo. (Ketlyn Lima)
Comida: meu primeiro amor. (Gustavo Coelho)
Comida: um amor que não ilude. (Gabrielly de Lima)
Comida: assassina que ficou presa na minha barriga. (Gustavo Godk)
Corpo: meio de transporte que leva ele mesmo. (Karine R. da Silva)
Corpo: misterioso limite. (Padmini Rocha)
Deus: nunca vi, mas dizem que tem muitos. (Jader de Paula Junior)
Deus: nos dá livre arbítrio para seguir os planos dele. (Ketlyn Lima)
Dinheiro: fruto de um suor que não foi pago. (Bruno Sequinel)
Espelho: o que a avó manda cobrir quando chove. (Gustavo Coelho)
Espelho: portal da depressão. (Luana Merchiori)
Espelho: oculta 4 sentidos. (Mateus Silva)
Exército: carpir um lote. (Bernardo Druziki)
Guerra: quando as estrelas são apagadas. (Felipe Ferreira)
Laranja: uma cor comestível. (Leonardo Perussolo)
Literatura: arte de ouvir com os olhos. (Nicolas de Quadros)
Mãe: quem te avisa para não ir pela floresta. (Kewin Citero)
Mãe: em casa a gente conversa. (Luana Bertão)
Mar: salgado, porém doce. (Pedro Haro)
Mar: deserto molhado. (Felipe Ferreira)
Morte: data de validade das pessoas. (Bruno Sequinel)
Morte: lutamos a vida inteira para conquistar. (Nicolas Marchiori)
Ódio: faz as pessoas se sentirem bem. (Luana Merchiori)
Pai: peça pra tua mãe. (Marco Aurélio)
Pai: o que fica bravo com a TV. (Rafael Monteiro)
Pai: o que não tive. (Carlos da Luz)
Pedra: às vezes está ali para ajudar, ou para atrapalhar, ou só está ali mesmo. (João Durau)
Pedra: matou a tesoura e foi presa pelo papel. (Gustavo Godk)
Preto: excluída da festa das cores. (Gabriel de Andrade)
Preto: de tão lindo, seduz o sol. (Camily Kerling)
Professor: portal das profissões. (Luana Merchiori)
Professor: google da vida. (Maria Eduarda da Silva)
Risada: ver o amigo tropeçar. (Giovana Furtado)
Risada: máscara para a tristeza. (Maria da Silva)
Risada: o que irrita professores. (Leonardo Perussolo)
Roxo: quando aperta, dói. (Matheus dos Santos)
Sol: um pop star, verdadeiro astro. (Guilherme Godk)
Tempo: é um leva e traz. (Maria Eduarda)
Terra: uma bola perdida no espaço. (João Durau)
Terra: é de todos, mas de alguns. (Nicolas de Quadros)
Tristeza: agora e sempre, em algum lugar. (Miguel Zanlorenci)
Tristeza: aumenta no meio da noite. (Ketlyn Lima)
Verde: o que fica cinza. (Gabriel de Andrade)
Vida: um jogo sem restart. (Gabriel Schuebel)

Não quero deixar com estes testemunhos a impressão ingênua de que crianças dispõem de algum crachá que lhes confere acesso especial à realidade das coisas, algum canal de comunicação transcendente com o mundo, mas sim que elas enxergam o mundo de forma diferente, situadas diante do filtro de menos lentes, essas inumeráveis lentes instaladas pouco a pouco pela educação e pela cultura ante nossos olhos (antolhos) e que podem acabar tornando tudo cinza, monocromático, sem cores comestíveis ou cores que seduzem o sol; lentes que, perfiladas em quantidade suficiente, acabam por assumir feições de escudo, e atrás do escudo tudo o que se vê é a face interna do escudo. Daí o frescor orvalhado de seus pensamentos, imagens e palavras. Daí o sabor poético. Daí o respiro: ouvir algo tão imprevisto, tão insólito, tão inaugural, que é como se o próprio Universo tivesse lhes fornecido uma procuração para falar em seu nome.

Otto Lara Resende, na crônica Vista Cansada, escreveu: “Nossos olhos se gastam no dia a dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.” Indiferença é quando nada se difere, quando nos acostumamos a abraçar as definições delimitadas, impessoais e aborrecidas dos dicionários, abandonando, pouco a pouco, nossas percepções mais primitivas, mais subjetivas, mais vivas, em uma palavra, literárias. E aí não tem jeito, mar será sempre “substantivo masculino; grande massa e extensão de água salgada que cobre três quartos da superfície da Terra”.

Talvez fazer literatura também seja isso: o resgate das primeiras imagens e impressões colhidas virginalmente por nosso outro eu, criança.

A literatura é a infância da espécie. E como a infância é mais feliz.

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