O menino invisível

O amigo me contou que seu filho adolescente anda com sérias dificuldades para fazer amigos na escola. Não fala quase nada sobre isso, mas dá a entender que se acha pouco importante para os outros. Essa suposta invisibilidade tornou-o inseguro e arredio. Deu para se coçar, pequenas feridas começaram a lhe aparecer no rosto e nos braços. Deixou o cabelo crescer para esconder o pescoço e a cara, passou a usar mangas compridas, luvas. Os pais conversaram com os professores, com outros pais que tiveram problemas semelhantes, em busca dos melhores conselhos para ajudá-lo a superar as dificuldades. Mas o garoto só piora. Recentemente aconteceu algo que o deixou arrasado. Ele e alguns rapazes da escola foram a um fast food. Na hora em que fizeram os pedidos no balcão, ficou por último. Quando finalmente se dirigiu à mesa onde todos estavam reunidos, não havia ninguém. Tinham pressa porque a aula ia começar, ele disse ao pai. Mas a questão era que haviam se esquecido dele. Ou tinham feito aquilo de propósito? De um jeito ou de outro, aquilo foi uma paulada na sua baixa autoestima. Chorou muito em casa, disse que não ia mais para a escola. Decidiram encaminhá-lo a um terapeuta.

– Ele é tímido, sensível. Não é desses garotos que jogam futebol, sobem em árvores, saem na porrada. E a garotada não perdoa, tira sarro, faz bullying, disse meu amigo.

Conversamos sobre os conceitos vulgares de fraco e forte, tão distantes do que uma sociedade evoluída poderia chamar de força e fraqueza. Ele me falou da inteligência do filho, de como era afetuoso, mas deixou transparecer uma sombra de preocupação quanto ao lugar dessas coisas num mundo machista. Ao mesmo tempo, eu sabia, jamais diria ao filho para pegar uma clava e bater na cabeça dos bisontes.

– A gente vai ter que ajudá-lo a encontrar o seu próprio caminho, disse. E suspirou, naquele “cansaço disso tudo” que era um dos seus bordões preferidos.

Quando desligamos, fiquei pensando no garoto com uma afeição melancólica, como se me visse num espelho. Há cinquenta anos atrás, eu também me achava invisível. Vivia numa atmosfera abstrata, em permanente descompasso com a realidade. Jogava futebol tão mal que ninguém me passava a bola. Via de longe o sangue jorrar da cara dos moleques briguentos, cerrando os dentes de pavor e asco. Olhava um caminho atrás de mim muito surpreso de tê-lo atravessado. E quando algum adulto me dirigia a palavra, ficava tão surpreendido que empalidecia. Do meu lugar de fantasma, respondia a suas perguntas inseguro, achando difícil que me ouvissem. Era como se eu estivesse por trás do meu corpo a pedir desculpas por sua omissão ou inconveniência. Disso resultava às vezes uma ansiedade despropositada, que me fazia dizer coisas fora de contexto, chorar por uma agressão inventada, ficar indiferente a uma notícia trágica. Falava da morte como se tivesse saudade. Demorava para dormir, temendo os monstros que durante o dia não encontravam o caminho do meu corpo. Um dia me perguntaram de que comida eu mais gostava. Não soube dizer, eu nunca havia pensado nisso. Adorava comer, de forma geral, mas com um prazer inespecífico. As cenas de violência encontravam eco no futuro. Um tio me ergueu no ar empunhando minha camisa e, quando me largou, não parei de cair. Fiquei caindo da fúria implausível daquele tio durante anos e anos. E quando numa manhã tediosa de chuva, todas as crianças trancadas em casa, dei um soco na cara do meu irmão, fiz isso como se batesse num repolho. Ninguém existia de fato. Aquilo tudo era mentira, trapaça, teatro, a qualquer hora a verdade invadiria o palco, a plateia perceberia o engano.

Se o meu corpo era o sol, eu era a névoa. O corpo era a verdade escondida na névoa. Uma verdade que permaneceria assim, obscura, até boa parte da fase adulta. Quando, quase destruído pelo descompasso, finalmente cheguei a mim mesmo, ao meu ser de carne e osso, me enchi de espanto com o fato de não ter sumido em tanta dispersão. Às vezes ainda apalpo os pés, feliz por eles serem capazes de reconhecer o chão. Como se eu fosse a água festejando a existência da fonte.

Não sei dizer se isso tudo aconteceu devido a um trauma qualquer ou se minha natureza era assim, mais impalpável. Talvez as duas coisas. E é claro que a sociedade, com seus laquês de superficialidade, com o botox do preconceito e a maquiagem do egoísmo não é nenhuma beleza natural. Uma criança pode não se reconhecer em seus grotescos artifícios e refugiar-se na névoa. Não sei, mas já não importa. O que importa é que eu também fui invisível, como o filho do meu amigo. E um dia, exausto de viver exilado de minha própria substância, me tornei real.

Só espero que aquele garoto não demore tanto a conhecer a sensação reconfortante de ter onde pousar suas dores e prazeres. Tomara que ele logo tenha um corpo, pesado, rasteiro, falível. Deliciosamente mortal.

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