O coração alheio

Meu amigo e eu estamos perdidos. Ele menos do que eu, com certeza, a qualquer momento pode reconhecer algo familiar no caminho e retomar o rumo. Está aqui há muito mais tempo, já andou por essas bandas em outras ocasiões. Imagino que é por isso que dirige o carro numa espécie de teimosa confiança, buscando conversar naturalmente comigo. Para mim, porém, não há norte. As cidadezinhas se repetem, iguais em sua arquitetura funcional de cubos amarelos, e as estradas que as unem mostram sempre a mesma paisagem meio estéril, entremeada de pinheiros e oliveiras. Os nomes nas placas de trânsito, apesar de seu poder de sugestão – Alhos Vedros, Cabeço Verde, Santo Antônio da Charneca – também não me situam senão em minha própria confusão interior.

Lá atrás, perto da Moita, quando mostrou indecisão sobre a rota e me disse, com uma ponta de inquietação, que estava sem crédito no telefone, tentei ajudar o amigo. Meu celular é muito velho, a memória está cheia e não conseguiria baixar nenhum aplicativo. Abri então um GPS online, que indicava uma única direção para a Lagoa de Albufeira, sem rotas alternativas. Seguimos por ela mas, a certa altura, ao informá-lo de que entraríamos à direita, ele me disse que não iria por ali. Não podia pegar uma autoestrada, costumava haver polícia e os papéis do carro não estavam em dia.

Um pouco tenso, não exatamente porque não sabemos o caminho, tento agora fazer o exercício de abandonar-me ao acaso. Só em parte dá certo, não me liberto de todo de um certo amargor infantil.

Enquanto meu amigo intui direções, lê placas, recorda-se vagamente de alguns lugares, penso nisso, no amargor infantil. Não desespero, nem angústia, mas amargor, como se a criança que fui sentisse “estar perdido” como condição existencial, algo que se prolonga indefinidamente e azeda. Para fazer alguma coisa na infância, qualquer coisa, precisava reagir a esta presunção de ambivalência: sim, estou aqui, mas não é onde deveria estar. Deveria estar lá, onde as coisas encontram uma ordem natural, fluida, sem ameaças internas. Precisava reagir à condição certamente artificial de estar perdido e, talvez, atirando-me a uma brincadeira eufórica até ficar com dor de cabeça, estudando até ver-me pálido e confuso, odiando os que me cercavam ou culpando-me disso a ponto de cair numa subserviência canina, lograsse romper a bolha de minha inexistência. Porque não, eu não existia, movia-me num fundo abissal, sob pressão indizível, entre peixes elétricos e seres transparentes, aquilo não podia ser a vida…

Meu amigo para num posto de gasolina, vai até a loja. Dentro do aquário, conversa com a mulher do caixa. Entrega-lhe dinheiro e pede informações, que ela dá apontando e contornando destinos com o braço. Ele volta, enche o tanque do carro.

– Estamos no caminho, me diz.

Senta-se ao meu lado e partimos.

Eu estava na casa de uma prima…

Era uma garota cheia de vida, parecia um moleque. Assoviava com dois dedos, andava sobre muros, passava os dias ao sol. Ao contrário de mim, era rica, tinha bicicletas, patinetes, bolas de basquete e vôlei, um impossível carrinho a motor. Brincávamos em seu vasto quintal e, uma ou duas vezes, levou-me para trás de um bambuzal, onde me beijou e saiu correndo pelo gramado, aos pulos.

Eu estava na casa dessa prima e almoçamos com seus pais. Eram figuras pétreas, educadíssimas. Falavam sempre baixo, em alemão, e dirigiam-se a mim em português, embora eu os entedesse o tempo todo. Compreendi, por exemplo, quando minha tia disse para a filha, servindo-lhe salada: “Ele é meio morto”. A menina não respondeu, mordiscou uma folha de alface. Então olhou-me de lado e sorriu.

Mais tarde ela estava em cima de uma árvore. Do chão, eu via sua calcinha branca pelas frestas do calção vermelho. Devia estar excitado sem saber o que me acontecia. Apesar disso, aquilo, a garota entre os galhos verdejantes, era a beleza a me humilhar com sua impostura, eu podia senti-lo no sudário de vento que me envolvia, pois sim, era meio morto, estávamos todos meio mortos, numa pantomima de espectros que aguardam sua vez de submergir.

Ela salta da árvore. Nós começamos a correr juntos, corremos, corremos sem parar; a menina se cansa, me vê sumir na distância, eu corro sozinho, corro anos e anos afora, surdo de tanto ouvir o coração alheio bater em minhas têmporas…

Estamos parados no alto de uma colina. Meu amigo me diz alguma coisa. Descemos do carro. Ele bate em meu ombro, escondo um susto.

– Conseguimos, ele diz. E acende o cigarro da vitória.

Lá embaixo, cercada de uma suave auréola de areia, serena como um espelho, a Lagoa de Albufeira reflete o olho profundo do céu

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