O Monstro semianalógico

O caso era contado pelos meus veteranos da faculdade em tom de anedota, embora quem o narrasse fosse capaz de pôr a mão no fogo para garantir a veracidade da passagem. Dizia-se que, logo no primeiro dia de aula, um dos professores fez circular pela sala uma folha em que cada aluno deveria indicar seu endereço de e-mail. Posteriormente, os universitários receberiam na caixa de entrada os arquivos com materiais de apoio, que deveriam ler previamente, antes de cada aula. Assim que a lista começou a correr de mão em mão, o João Monstro se levantou e, empertigado como quem apresenta uma argumentação contundente, emendou: “Professor, eu sou meio contra a banalização dos recursos digitais. Posso colocar o endereço da minha república e receber os materiais por carta?”. Segundo consta, a classe retumbou numa gargalhada e o mestre nunca foi ao correio para enviar um textinho que fosse ao peculiar aluno.

Convém contextualizar: era início dos anos 2000 e a internet (discada) era tão incipiente que nem passava perto da esmagadora maioria das repúblicas estudantis, que quando muito dispunha de um computadorzinho 386 a disquete e olhe lá (aos mais jovens, lê-se “três-oito-meia”. Pesquise aí, para ver o naipe do trambolho). Sem PC em casa, para fazer os trabalhos acadêmicos, eu, mesmo, enjoei de me infiltrar no laboratório de informática de uma faculdade particular com o login de um amigo (essas pequenas malandragens que nascem da necessidade). Quando era pego em flagrante e posto para fora, restava-me entregar os artigos manuscritos, como faziam os escribas em seus papiros no Egito Antigo, três mil anos antes de Cristo.

Enfim… Fato é que, com sua intervenção corajosa, João Monstro demarcou território, se apresentando tal qual era: um homem analógico. Quase sempre com sua camisa regata do Palmeiras e com óculos de sol estilo surfista, o nobre amigo escapou incólume a todos os modismos digitais que se sucederam ao longo dos anos seguintes. Não aderiu à febre do Orkut e não chegou perto das salas de bate-papo do Uol, nem que fosse para jogar conversa nas menininhas. Tenho para mim que o Monstro não ignorava esses frufrus tecnológicos meramente por princípios, mas principalmente por não ver graça, mesmo. Para o João, a vida real se dava ali fora, não pela interface de uma tela.

Depois da formatura, fiquei anos sem ter notícias do Monstro. Pudera: ainda hoje, ele permanece longe de qualquer rede social e sou capaz de apostar que nunca tirou uma selfie. Não me lembro bem como foi, mas, por incrível que pareça, o contato com o bom amigo foi retomado (pasmem vocês!) por meio da internet. Poeta marginal, o João escreve seus poemas urbanos e os distribui a partir de uma lista de e-mails a que tive a honra de ser incluído. “Ah, então o Monstro sucumbiu ao canto da sereia do mundo digital?”. Longe disso! O camarada fez uma ou outra concessão, é verdade, mas que podem ser consideradas quase nada diante da miríade de gadgets e softwares que pululalam desde os tempos sépia da faculdade. Eu o classificaria, agora, como um Monstro semianalógico.

Uns anos atrás, tive o prazer de reencontrá-lo em São Paulo e de constatar que o João continua praticamente o mesmo – exceto pelos cabelos, que lhe cresceram à altura dos ombros. Sentei-me a um boteco com ele e com o Alemão nos arredores da Rua Turiassu, onde assistimos a um jogo do Palmeiras e tomamos umas quantas cervejas. Depois de prosearmos sobre política e jornalismo, comprei uma edição de Cerro Arriba, seu primeiro livro de foto-poemas, lançado de forma independente. Paguei-lhe em dinheiro vivo e, para aumentar o folclore, gosto de dizer que o fiz porque o Monstro não tem conta em banco (embora, reconheço, eu não saiba se é verdade).

Um pouco antes da pandemia, o Monstro veio me visitar. Para combinar a viagem se valeu do celular que tinha comprado tempos atrás. “Ah, olha aí! O cara aderiu!”. Nada disso. Não se trata de um smartphone, mas de um daqueles Nokias de antanho, que não se conectam à internet – de modo que, para acertar os detalhes da temporada aqui na Terra do Frio, João recorreu ao velho SMS ou, simplesmente, (vejam vocês) a ligações telefônicas. Aqui, não usou o Google para pesquisar lugares para conhecer, tampouco usou aplicativos de GPS ou fez um perfil no Tinder. Conduziu sua exploração à moda antiga: pedindo indicações e informações às pessoas com quem conversava, e flertando ao balcão dos botequinhos. Chamou a atenção dos locais não por seu distanciamento digital, mas por ser um boa-prosa e bem informado, desses com quem é possível falar sobre tudo.

Não sei bem, mas acho que abordei o tema porque o celular andou mais estrepitoso nesta manhã do que o de costume. Pelo WhatsApp, vieram-me duas demandas de trabalho. Adiante, um colega me cobrou resposta a uma mensagem que ele tinha me enviado semana passada – e que eu visualizei, mas me esqueci de responder. No grupo da família e no do futebol, são tantos vídeos e tantos assuntos que não dou conta de acompanhar, muito menos de discutir. Andei tão sumido, que minha mãe me ligou para saber se eu não tinha sido abduzido ou me exilado no Uruguai. Há tempos, o aparelho só funciona no modo silencioso, porque aquele bipezinho de mensagem recebida me dá nos nervos. No e-mail, pingaram dois boletos para pagar e uma enxurrada de newsletters que não vou ter ganas de abrir. No Instagram, meu feed está sem atualização há mais de um mês… Inevitável não lembrar do bom e velho Monstro, que sabe das coisas. Quiçá um dia eu conquiste minha alforria e me torne, também, um ser semianalógico.

Sobre o/a autor/a

Rolar para cima