Mátria

Depois de muito tempo vendo minha mãe só por vídeo, atravessei o oceano para ir ao seu encontro. Ao chegar à cidadezinha do interior de Santa Catarina onde ela vive, abracei a velhinha com calma, exausto. Senti sua presença como a de uma grande árvore sob a qual eu finalmente podia descansar.

Um dos meus irmãos e minhas sobrinhas estavam hospedados na casa. Conversei com todos até tarde da noite. Falamos sobre as pessoas da família que estavam e que não estavam ali. Contei um pouco sobre Portugal, evitando falar do Brasil, porque alguns ali ainda eram bolsonaristas. Mas era visível que todos já respiravam mais aliviados. E quando fomos dormir, acabei me instalando no quarto da mãe. Havia uma caminha para mim, posicionada em L com a larga cama de viúva.

Agora eu e ela estávamos deitados no escuro. Tão perto um do outro que eu podia ouvi-la esfregar o corpo.

– Não consegue dormir, eu disse.

– Não. Muita dor no ciático.

– A senhora sempre teve essas dores.

– Sempre não. Quando eu era adolescente uma vez eu caí…

– …no corredor encerado.

– Isso. A tua avó tinha mania de deixar a casa brilhando. O chão ficava muito liso.

Recordei o corredor de que ela falava, na casa dos meus avós em Porto Alegre. Lembrei o cheiro amendoado da cera, o brilho aveludado do piso de tábuas escuras. Um corredor fabular que me levava através de meio século, pela penumbra da memória.

– Quantos anos o pai tinha quando roubou você de casa?

– Trinta.

– E você, dezessete?

– É. Mas ele não me roubou.

– Não roubou?

– A gente foi morar junto contra a vontade dos teus avós. Mas foi tudo combinado. Eu queria ir embora.

– Ah… Aí vocês foram pra Curitiba.

– Não. A gente foi morar num barraco. Era num terreno que ele comprou, longe pra chuchu, mas lá mesmo, em Porto Alegre. Teu pai ia fazer uma casa no terreno, mas cadê dinheiro. Ele era telegrafista, ganhava muito pouco.

Fiquei imaginando o barraco. A jovem loira, magra e (para minha surpresa) decidida. O telegrafista de cabelos lambidos com brilhantina. Na minha fantasia os dois não tinham voz, e ela vivia sob um halo de panelas reluzentes. O terreno era uma profusão de ervas daninhas. E o pai só tinha duas possibilidades: ou entrava pela porta do barraco, ou estava sentado numa cadeira dura de madeira. Um casal de bonecos a que inutilmente eu tentava dar vida.

Apesar da dor, minha mãe se esforçava para conversar mais comigo. Na tranquila noite provinciana, suas palavras soavam claras e solitárias.

– Você está gostando de morar lá?

– Estou.

– Por que você foi pra tão longe?

– Eu estava cansado.

– Cansado de quê?

– De tudo. Do Brasil. Do trabalho. De mim mesmo. Precisava me libertar até dos amigos.

– Ahã. – Ela esfregou o “ciático” – É bom viver em Portugal?

– Isso depende da pessoa. Mas pra mim é. Nessa altura da vida, pelo menos.

– Você não fica triste.

– Não. Me sinto até melhor. Mas me conta: quando vocês foram pra Curitiba?

– O quê?

– Quando vocês foram de Porto Alegre pra Curitiba.

– Depois que o teu irmão nasceu. Teu pai perdeu o emprego. Aí alguém, um amigo dele, ofereceu um trabalho lá.

– Vocês moravam no barraco?

– Não… não dava pra eu ter o filho no barraco, sozinha… já era na casa dos teus avós…

Um cão latia bem longe. Ela resmungou mais alguma coisa, depois adormeceu. A luz da rua atravessava a cortina espessa e leitosa, deixando o quarto numa suspensão suave de matéria rarefeita. Ergui a cabeça: a mãe, de boca aberta, parecia morta. Mas as mãos cruzadas sobre a barriga subiam e desciam, suavemente. Nos últimos tempos, andando por Lisboa, eu sofria só de imaginar que ela morresse sem nos vermos pelo menos mais uma vez. Agora estávamos juntos, no mesmo quarto, e noite após noite eu lhe faria perguntas sobre o nosso passado. Ela me responderia calmamente, sem se espantar com o fato de que eu a imaginava bem mais frágil do que na verdade era. Tudo havia sido precário naqueles primeiros anos com o pai, e ela tivera três filhos muito jovem, além de adotar uma menina. Mas nada fora feito contra a sua vontade, como uma angústia insidiosa me fizera pensar.
Fiquei ali fruindo a libertação da garota prisioneira que inventei. Me perguntava porque eu tinha feito isso. Era talvez consequência da insegurança que nos rondava naquela época, à qual atribuí um óbvio culpado. Me lembrei de que eu mesmo saí de casa aos dezessete anos e, como a senhora ao meu lado, encarei o mundo com cega teimosia. Nós dois nos desastramos, fizemos nossas vidas aos trancos e barrancos, mas ninguém determinou o nosso destino.

Minha mãe fechou a boca, passou a mão molenga pelo rosto. Sem abrir os olhos, disse bem baixinho:

– Dorme…

E eu me entreguei ao sono, num desarme profundo daquelas inquietações longínquas.

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