É pra acabar

Tem um jornal na minha cidade e os textos desse jornal são ruins. Muito ruins.

A esse jornal, bastaria publicar as notícias da minha cidade e isso por si só já o rebaixaria à categoria das desgraças. Mas, como desgraça muita também já virou bobagem, os textos são entregues ao leitor como mais uma delas, anexada, em plena conformidade com a cara enfarruscada dos nossos dias, gerando assim o efeito inusitado (talvez uma sacada genial, vai saber) da harmônica coesão entre forma e conteúdo.

Os redatores do jornal não concatenam as ideias, truncam tudo, escolhem palavras claramente inadequadas para a situação, usam vírgulas parecendo seguir obstinadamente os critérios regidos pelo acaso, e, pior dos mundos, interrompem bruscamente os períodos, puxando os leitores à força pelo braço e os arrastando aos coices por lamacentos desvios de rota que só a muito custo retornarão à estrada principal. De modo que, às vezes, ao chegarmos ao ponto final da notícia, nos flagramos coçando a cabeça e perguntando: ¿mas o que foi mesmo que aconteceu?

Se pensar bem, é um pouco triste. Redatores, afinal de contas, ganham a vida para redigir. Deveriam saber, mais ainda por escreverem todo dia, manejar com destreza os instrumentos formais da clareza e da objetividade. É um pouco triste, de fato. Mas, porque sou uma pessoa bastante repreensível (ou cinicamente resignada), o que acontece é que acabo só achando tudo muito engraçado e fico imaginando situações em que as características ruins desses textos fossem deliberadamente extrapoladas, levadas ao outro lado da fronteira do fanatismo por algum doido descontrolado.

De todos os reprováveis expedientes técnicos que eu poderia mencionar, um deles é o que mais me causa estranheza: o verbo “acabar”, no sentido de desfecho ou no sentido de algo que acaba acontecendo, fruto da não deliberação e do acaso, como em “Homem acabou esfaqueando a vítima 27 vezes”. O verbo é uma das paixões do jornal, usado com a tenacidade de um adolescente em pico hormonal, e notícia alguma ali parece conseguir se livrar dele (do verbo, não do adolescente, que desses ninguém se livra). Como na notícia abaixo:

HOMEM FURTA CELULAR DE APARTAMENTO

Um homem acabou invadindo um apartamento localizado na Rua José de Paiva Vidal, região do Santa Terezinha. A situação foi registrada neste sábado (11) por volta das 20h. O indivíduo acabou furtando um aparelho de telefone celular.

Policiais militares foram acionados e realizaram buscas no condomínio, mas o elemento acabou não sendo localizado.

Empunhando a pena da amargura e do já declarado cinismo dos resignados convictos de que nada vai melhorar, decidi reescrever o trecho acima, levando ao paroxismo o fetiche do periódico pelos acabamentos.

HOMEM ACABA FURTANDO CELULAR DE APARTAMENTO

Um homem acabou invadindo um domicílio (quando percebeu já estava lá, nem disse ué) que acabou sendo um apartamento (a empreiteira não se decidia, então tiraram no palitinho e deu apartamento) que acabou (na falta de rua melhor) ficando localizado na Rua José de Paiva Vidal, região que acabou se chamando Terezinha (mas no fim acabou Santa Terezinha, apesar de a canonizada ter sempre declarado amor pela simplicidade e horror aos pretensiosos). A situação acabou sendo registrada (ninguém queria, mas pediram pra alguém anotar) neste sábado (que acabou sendo dia 11, seguíssemos outro calendário e o dia seria outro) por volta das 20h. O indivíduo acabou furtando (já que estava ali sem saber como, aproveitou a ocasião e se fez ladrão) um aparelho de telefone celular. Policiais militares (na falta do Super Homem ou do Batman) acabaram por ser acionados e acabaram (já que tamo aqui vamo procurá o meliante) realizando buscas no condomínio, mas o elemento acabou (deve ter se teletransportado como no início e acabado invadindo alguma quitinete) não sendo localizado.

É caricatura, claro, acabei me exaltando no atravessar a fronteira dos doidos. A verdade é que gosto muito do jornal (sem nenhuma condescendência) e acabo lendo-o quase sempre. Porque, apesar da fechada mata textual que toda vez é preciso desbastar a golpes de facão, ele me mantém muito bem informado a respeito dos roubos, furtos, arrombamentos, latrocínios, homicídios, estupros, feminicídios, violência doméstica, execuções, corpos carbonizados, prisões de peixes pequenos, motins de presos, fugas da cadeia, delinquências, acidentes horripilantes de trânsito, meninos afogados na Lagoa, velhinhas caindo no golpe do paco, apreensões de cigarro paraguaio, furdúncios, barracos, bate-bocas, pugilato entre vizinhos, briga entre irmãos acabando em facada e outras cotidianidades desta exemplar (nenhuma ironia) cidade brasileira.

E, para que meus concidadãos ou o dono do jornal não acabem (mas acho que já é tarde demais) me apontado o dedo indicador (ou o do meio), acabo por aqui.

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