Uns dias antes do feriado da Semana Santa, surgiu em sala de aula a velha discussão barra de chocolate versus ovo de Páscoa. Que o ovo é o mesmíssimo chocolate e blablablá, que é muito mais caro proporcionalmente que a barra e mimimi. Até que uma aluna disse: “Mas a barra não tem aquele sabor…” − pensou um pouquinho – “a barra não tem aquele sabor oval, sabe…”, desenhando no ar, com as mãos, um ovo de Páscoa.
Foi seguida por um coro de aprovação (ia dizer ovacionada, e digo mesmo), por ter dado forma a uma ideia, a uma imagem incerta que estava ali, latente, e só necessitava ser modelada pela palavra justa para tornar-se palpável.
Ensinou-nos a todos uma lição sobre a relação entre forma e conteúdo, seu vínculo fundamental, sua falsa dicotomia, pois que quando se muda um, automaticamente altera-se também o outro, ninguém duvidando que uma suíte de Bach, se tocada numa cuíca, seria algo bastante diferente da tocada no violoncelo, e que a dublagem brasileira da voz de Arnold Schwarzenegger, se fosse feita pelo Louro José, transformaria significativamente O Exterminador do Futuro e seu Hasta la vista, baby. Uma vez, numa tarde em que eu tinha bastante tempo de sobra, ouvi 12 segundos de uma versão reggae de Stairway to Heaven…
Erva-mate infusionada na água quente dentro de uma caneca e não na cuia nunca terá sabor de chimarrão. Massa de trigo frita recheada com frango desfiado nunca será uma coxinha se não tiver o formato certo de coxinha. E um pensamento cotidiano qualquer se torna muito mais saboroso (e valoroso) quando embrulhado nas palavras de um escritor de talento (olha o chocolate aí de novo).
Saramago, se não era Saramago, poderia ter escrito: Perco o amigo, mas não perco a piada. Mas, como era, botou: “Nestas coisas da escrita, não é raro que uma palavra puxe por outra só pelo bem que soam juntas, assim muita vez se sacrificando o respeito à leviandade, a ética à estética, (…)”
Proust, se não fosse Proust, poderia ter escrito: Descobri que o nome dela era Gilberte e agora posso procurá-la. Mas, porque era, preferiu: * “Assim passou junto a mim este nome de Gilberte, dado como um talismã que talvez me permitisse reencontrar um dia essa que ele acabava de transformar numa pessoa e que, um momento antes, não passava de uma imagem incerta.”
Deem ovos com seu sabor oval para as crianças (quem puder, claro). Não é isso que vai fazê-las serem abocanhadas pelo lobo mau capitalista. Esse processo acontecerá por outros meios, igualmente doces e imunes a nosso azedume. Se bem que é possível unir o melhor dos dois mundos (o dos ovos e o do empertigado não ao capitalismo), derretendo barras de chocolate e pondo em fôrmas ovais, dando assim um olé, uma goleada, um chocolate nos preços abusivos e ainda se divertindo e se melecando.
Quem nunca preferiu uma coquinha bem gelada na garrafa e não na lata que bote o primeiro ovo. De ouro.
*Trecho de Em Busca do Tempo Perdido, tradução de Fernando Py.