Apontamentos – XII

Neste primeiro trimestre houve, do meu convívio, três desaparecimentos, que apesar de saber que algum dia ocorreriam, foram inesperados.

Desapareceram do meu campo visual uma árvore, o Homem e uma gata.

O que mais sinto falta é da gata.

É desumano isso?


A árvore

No frescor do outono folhas e flores voam. As da árvore em frente ao prédio em que moro não mais voam, foi cortada.

Neste primeiro outono, sem ela, a rua mudou o tom, não é mais amarela-marrom das folhas recém caídas e apodrecidas na calçada. Folhas que o Homem varria.

Um belo dia (maneira de escrever), os homens contratados pela prefeitura chegaram e aqui na quadra, cortaram três árvores, uma delas a da frente do prédio, e desgalharam todas as demais.
Eles chamam de poda, mas eu de desgalho, não vi nenhuma lógica na maneira em que cortam os galhos.

Chego a imaginar que sem as árvores e com a poda das demais, o Homem se sentiu sem o trabalho e resolveu ir embora.

Na calçada restou o tronco que deu início ao processo de apodrecimento.


O Homem

Há mais de um ano escrevi sobre o Homem. Toda a incógnita daquela crônica permanece deste então.

Há cerca de 30 dias, assim como chegou, desapareceu. Não há mais o Homem com sua indefectível roupa branca: avental, moletom de mangas compridas com capuz e máscara e óculos escuros.

Não importava se com chuva, sol, calor ou frio, varrendo as ruas.

Chegava antes das sete da manhã e indo embora em torno das sete da noite: cerca de 12 horas de trabalho.

Cedo, juntava seus instrumentos – rastelo, vassoura e sacos de lixo – de trabalho e se punha a limpar as ruas.

Mesmo com muita chuva não interrompia o que fazia, cobria sua vestimenta branca com uma capa amarela, com capuz, e varria as folhas para não entupir os bueiros e se entupido, desentupia.

O seu desaparecimento me encheu de perguntas: morreu? Adoeceu? Alguém, rispidamente, o mandou não mais voltar? Se é que recebia pelo trabalho, deixou de receber e passou a negar-se – o que é correto – a trabalhar?

Mas, gosto mesmo é a hipótese anterior: sem as folhas sujando a rua e entupindo bueiros resolveu não mais voltar.

Para mim o Homem já fazia parte do cotidiano, do movimento e da limpeza da rua. Hoje a rua está preenchida por uma espécie de fantasma: às vezes vejo-o varrendo as calçadas.


A gata

Há cerca de um mês, também, desapareceu a Mimi.

Ela chegou no início da pandemia e foi acolhida, se não por todos, pela maioria dos que vivem no prédio. Quando chegou já era adulta. Pelo momento da chegada passou a ser chamada, por algumas pessoas do prédio, de Covid. Não gostei.

Nós aqui de casa passamos a chamá-la de Mimi. Não fomos criativos, mas cada vez que nos dirigíamos a ela com esse nome ela respondia com miados. Achamos que ela gostou.
Mas, observei que ela respondia a todos, não importando com que nome fosse chamada: Pantera, Escada, Estrela, nomes dados principalmente pelas crianças.

A Mimi desapareceu. Não quero imaginar o pior, tipo morreu atropelada ou matada. Prefiro imaginar que fugiu. Cansou-se de nós e da vida que vivia e foi em busca de outras aventuras.
Desde o desaparecimento, assim que chego na garagem espero encontra-la em cima de algum carro, como ela ficava, ouvir um miado ou senti-la, com seu corpo peludo, afagando minhas pernas.

Espera, até agora, em vão.

Todos os dias vou até a janela esperando vê-la deitada no jardim ou saindo, com toda a calma do mundo, para passear.

Final da tarde ela sentava à beira da calçada e assistia o movimento da rua. Chego a ter a impressão que ficava vendo o colorido do céu quando o sol se punha.

A árvore que servia de esconderijo para ela foi cortada. Ao anoitecer, algumas vezes, flagrei-a em cima da árvore à espreita: observava o que acontecia na calçada.

Há também a hipótese, que assim como o Homem, sem a árvore resolveu ir embora. Há também outra hipótese: em alguns postes aqui da Vila tem um cartaz com a foto de um gato de nome Zazu que desapareceu. Ela pode ter ido, com ele, por aí zazuar.


P.S. Uma das manhãs desta semana, antes das sete horas, quando saia para nadar, já com esta crônica concluída, vejo o Homem de volta nos seus afazeres. Agora, sem sua roupa branca, vestido de cinza.

Será que ficou doente e fez promessa de nunca mais usar branco, ou foi alguma bronca de quem lava a roupa, pois o branco sempre encarde?

Ao vê-lo reacendeu a minha esperança que a Mimi, assim como o Homem, volte.

Espero que ela não seja um Dom Sebastião, que no final do século XVI, desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir, e diz a lenda que há gente em Portugal que ainda espera a volta dele.

Não conseguirei viver tanto tempo par esperar pela volta dela.

Sobre o/a autor/a

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