Lingueirão

Depois de um tempo desaparecido, voltei ao Trazvinho, o meu restaurante preferido no Barreiro. Não é caro, você pode combinar deliciosas porções de mariscos, peixes e carnes e a atmosfera é agradável, sem afetações. E tem o Paulo, o garçom gigante e simpático que é a alma do lugar. Foi ele quem me recebeu na porta.

Apertou firme a minha mão:

– Por onde é que andaste?

Eu sorri. Ele me arrumou uma mesa bem em frente à fachada envidraçada. Olhei com prazer para a Avenida Bento Gonçalves. Ali estavam os grandes plátanos brincando com a brisa, contra o plano longo e sossegado das águas do Tejo. A noite estava clara; dava para ver do outro lado do rio, bem longe, os pontos trêmulos das luzes desenhando as colinas de Lisboa. Assim pequena, purificada pela distância e pelas águas, a velha cidade viciosa tinha algo de navio, de embarcação silenciosa em remota passagem pelo tempo.

Sem que eu pedisse nada, o Paulo me trouxe uma jarra de vinho branco à pressão.

– Lingueirão?

Concordei com outro sorriso.

– Você está bem?, perguntei.

Ele passou a mão na careca suada com aquela cara de meninão perdido que, quando o conheci há quatro anos, imediatamente me pôs à vontade.

– Eu estou bem. Estou bem… Azeitonas?

As pessoas das outras mesas conversavam calmamente, mal olhavam para a tevê acima das nossas cabeças, que costuma servir de apoio para a dispersão. É que o começo da primavera nos deixou mais leves. Aos poucos, fomos abandonando os casacos e, com eles, os pensamentos mais pesados do inverno. Me chamou a atenção uma adolescente que falava agitando o garfo no ar. Era como se conversasse entusiasmada com uma amiga de escola, mas quem estava à sua frente era um casal de cabelos muito brancos. O dois a ouviam interessados, de um jeito natural, e eu viajei na possibilidade da superação das diferenças aparentes, baseada no fato de que elas são apenas ilusões desta caverna de Platão.

Comi uma azeitona, dei um gole no vinho fresco. Pensei na pergunta do Paulo: “Por onde é que andaste?”. Não é fácil como parece dar uma resposta a isso. Sim, fui do Barreiro a Lisboa umas quantas vezes, viajei para Tavira, Évora, Viseu, Elvas, Ovar, Miranda do Douro, Ilha do Pico, andei de carro, peguei barcos, ônibus, aviões, mas não saí de mim. De um certo ponto de vista eu poderia dizer que não fui a lugar nenhum. Fiquei aqui e ali olhando parvamente para esse estranho que eu sou, cujo mistério se adensa num corpo que declina. Pior: começo a perceber que eu sou os outros, que somos feitos do mesmo barro de modelar sonhos, o que transforma todos os lugares e rostos na mesma sala de espelhos. Cada vez que vejo meu reflexo, sou outro, de tal modo que aquilo que chamo de “eu” é uma coletividade de espectros produzidos por minha mente…

Estava pensando em ir lá fora fumar um cigarro, para ficar mais à vontade com essa ideia, quando o Paulo me trouxe o lingueirão. Muito agradecido, fui temporariamente resgatado à suruba dos sentidos.
Comecei a comer devagar, fruindo as primícias da relação. Depois, afundei meus dedos e minha boca com vontade naqueles moluscos que fazem esquecer o custo de vida e as vertigens da razão. Quando acabei, o Paulo veio até mim, parou ao meu lado, fingiu olhar para as outras mesas:

– Bebe o caldo.

Reparei que ninguém estava me vendo e obedeci: virei o prato na boca. Aquilo foi um beijo de ninfa oceânica. Ao sair do transe, procurei meu mentor. Ele já estava atendendo outro cliente, mas olhou para mim e piscou.

São coisas assim que estão na base do meu apego à vida. Mil noites de insônia, remoendo contas e infortúnios, somem diante de um prato suculento. O gesto fraterno de um estranho, num passe de mágica, me faz esquecer que isto aqui está cheio daquele “aborrecimento e desprezo da coisa humana”, de que falou o velho Turguêniev. Como se o prazer e a bondade, mostrando uma cara simples, tivessem um poder muito superior ao que aparentam ter, em suas breves incursões por esta vida marcada pela monotonia da infelicidade.

O restaurante estava fechando. Paguei a conta, me despedi do Paulo.

– Não desapareças, ele disse.

Cometi o gesto ridículo de pôr a mão em sua nuca.

Atravessei a rua e fiquei fumando embaixo dos plátanos, ouvindo o murmulho das águas nas areias da orla. Murmulho? Que seja, era isso que eu ouvia, que fique murmulho. Essa coisa de usar só as palavras que existem não basta, e mesmo inventando novas formas de dizer não se diz quase nada. Tudo escapa o tempo todo, tudo é maior, mais vasto ou mais fino do que a linguagem. Como descrever, por exemplo, a sensação líquida que eu tive quando se apagaram as luzes do restaurante e ficou só o lume da lua nas árvores? Foi como se a influência lunar me devolvesse ao meu ser aquático.

Era um efeito do lingueirão, que agiu em mim como a madeleine em Proust? Aquele prazer talvez fosse uma lembrança da minha origem mais longínqua… Sei que alguém vai dizer que foi o vinho, mas qual o problema? Existem mais coisas entre o céu e a terra do que nossa vã sobriedade.

O Paulo e a cozinheira saíram do Trazvinho. A mulher trancou a porta. Feito um espião ali no escuro, acompanhei os passos do Paulo. Ele entrou num Ctroen 3CV, uma antiguidade de placa preta. O carrinho balançou sob o seu peso como um sapo. Ele deu a ré sem hesitar e avançou o mais rápido que pôde pela avenida. Devia estar louco para chegar em casa. Imagino que não seja nada fácil ser grande e gentil durante horas, por entre aquelas mesinhas cheias de gente exigindo atenção. Me veio a imagem de um enorme pássaro dando comida aos filhotes no ninho.

Quando as lanternas do carrinho sumiram na curva, a rua mergulhou na mais serena quietude. Olhei para o rio e lembrei da frase generosa, despojada:

– Bebe o caldo.

Não deixe que as formalidades e a educação te tornem estúpido, queria ele quem sabe dizer. Bebe o caldo. Bebe a brisa, bebe a lua. Bebe a vida.

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