Humanimalismo ou Uma crônica animal

Dos totens tribais aos deuses zoomórficos do Egito, das tatuagens de águias, corujas e escorpiões à serpente tentando Eva, do jogo do bicho aos meninos que perdem a virgindade com cabras, nossa íntima e histórica relação com os outros animais certamente é um dos traços mais marcantes e definidores da humanidade. Nosso imaginário coletivo é densamente habitado por centauros e minotauros, faunos e sereias, iaras e quibungos, por signos zodiacais que supostamente integrariam nossa personalidade, por histórias de homens que se transformam em lobos e por histórias de lobos que falam, pensam e agem como homens. E, como não poderia deixar de ser, essa identificação, a um tempo causa de tanto orgulho e tanto desconforto, inevitavelmente acabou escorrendo para nossas bocas e se refletindo em provérbios, ditados, interjeições, metáforas, sobrenomes, apelidos, ofensas, elogios… se refletindo, enfim, em linguagem.

Acredito entusiasticamente não haver língua no mundo que não ostente em seu repertório expressões relacionadas a animais. E uma pesquisa mais ou menos breve me ensinou coisas muitíssimo interessantes nesse sentido. Há até expressões que, embora originárias de dois idiomas distintos, são plenamente compatíveis conceitualmente, necessitando apenas de um intercâmbio entre os bichinhos. E não se trata de trocar gato por lebre não. Em francês, por exemplo, há o ditado “só quando as galinhas tiverem dentes”, que equivale ao nosso “nem que a vaca tussa”; também há o “cachorros não fazem gatos”, que tem o mesmo sentido do nosso “filho de peixe, peixinho é”; e ainda o “não venda a pele do urso antes de matá-lo”, cujo teor é idêntico ao “não conte com o ovo dentro da galinha”. Em alemão, quando chove durante muitos dias, eles dizem que faz um tempo de cachorro, já aqui nós dizemos que vamos virar sapos. Em inglês, quando alguém bebeu todas e mais um pouco, diz-se que o cidadão está vendo elefantes rosas, enquanto aqui, ao nos esquivarmos do seu bafo de onça como hábeis pugilistas peso galo, dizemos que ele está bêbado feito um gambá.

É bastante povoado, enfim, nosso empavonado leque animalesco. Como gatinhos começamos: engatinhando.

Entram nessa história até peixes fora d’água e alguns gatos pingados, amigos da onça e mães corujas, cavalos dados e cavalos tirados da chuva, bois de piranha e bois na linha, pés de coelho, pés-de-cabra, pés-de-pato, pés de galinha, abelhudos, formigões, antas e jararacas. Tem lugar nessa arca linguística até mesmo para o bode expiatório, que, ainda que não tenha sangue de barata, sempre acaba engolindo sapo e pagando o pato pelos pecados alheios.

(Fosse eu esse pobre caprino, aliás, e daria um jeito de adquirir uns olhos de lince e sempre ficaria de butuca, com a pulga atrás da orelha, que não são poucas as divindades sedentas pelo trágico sacrifício de um bode.)

Transforma-se em lobisomem o sétimo filho homem, mulher que deita com padre vira mula-sem-cabeça, deuses gregos disfarçados de cisne dão origem a Helenas de Troia, e botos cor-de-rosa disfarçados de rapazes sedutores engravidam jovens amazônicas incautas. Mas não precisamos fazer disso um bicho de sete cabeças. Já que podemos ser tantos animais, ¿que mal podem fazer uns bois a mais?

Você praticamente pode ser o bicho que você quiser: bicha, bicho-grilo, bicho carpinteiro ou bicho do Paraná, um espírito de porco ou um porco inteiro, um cabra da peste ou um cabra metido a besta. Mas antes ser uma barata tonta do que uma mosca morta, e antes ser um mão de vaca do que uma vaca de presépio. Você também pode ser o patinho feio, uma cobra criada, ser a ovelha negra da família e ter forte queda por lobos em pele de cordeiro, desde que não cutuque onça com vara curta vindo aqui cantar de galo em meu terreiro. E lembre-se de que se no tempo das vacas gordas você já não se bica muito com alguém, ¿o que dizer de quando a tua vaca for pro brejo? Por isso é bom não enfiar muitas minhocas na cabeça e nunca esquecer que as pessoas têm memória de elefante quando se trata de um agravo.

Aliás, quando se trata de agravos, o repertório é bastante vasto. Seu verme, seu rato, seu inseto, sua ameba, seu porco, sua baleia, seu viado, sua bicha, sua galinha, sua vaca, seu macaco, seu burro, seu cavalo. É a psicologia da desumanização: atribuir, ao outro, características bestializantes com o intuito de inferiorizá-lo e, em casos extremos (mas numerosos e recorrentes), não sentir piedade nem remorso diante da violência praticada contra ele. São poucos, afinal, os que sentem piedade pela morte de um inseto ou de um rato. É a nossa proverbial burrice, o nosso cérebro de camarão falando mais alto e desmentindo a sabedoria popular que diz que cachorro que ladra não morde. Nesse quesito, infelizmente, avançamos a passos de tartaruga.

Mas nem tudo são ofensas no mundo humanimalista. Eu, por exemplo, que nunca fui um garanhão, mas que, apesar do estômago de avestruz, também nunca fui de ficar comendo mosca, sou casado com uma gata, e nela abraços de urso nunca irão faltar. Abraços de urso e muito mais selvagerias. Mas quanto ao muito mais, faço boca de siri, que se não ela vira onça, solta os cachorros em cima de mim e o bicho pega. E aí não vão adiantar lágrimas de crocodilo, nem fazer cara de cachorro pidão, e talvez até tenha de picar a mula…

Pelo que ficou demonstrado, a bicharada parece não sair mesmo da nossa boca. O que é bastante justificável se lembrarmos que nosso tão adorado e santificado corpo não passa, na verdade, de uma imensa e superpovoada colônia explorada por 39 trilhões de bactérias e outros microrganismos que trafegam por nossas línguas, dentes, gengivas, esôfagos, estômagos, intestinos grossos e delgados e demais adjacências. ¡Arre égua!

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