Entre parafusos, guarda-chuvas e as histórias do meio

Até hoje, tenho atravessado os dias chuvosos com a sorte na mão e, na melhor das hipóteses, uma meia-calça na bolsa e um lenço para o caso de esfriar, o que é sempre o caso quando em Curitiba. Enquanto insisto em escrever e escolho a já exausta temática dos guarda-chuvas, que tem me perseguido feito uma pomba inconveniente de qualquer praça, sou avisada pela minha memória que nada superará o arremesso de um desses artefatos narrado no primeiro capítulo de O Jogo da Amarelinha. Tão bonita a cena em que no meio se lê “(…) e, nesse momento, nas suas mãos, armou-se uma catástrofe de relâmpagos frios e nuvens negras, tiras de pano roto caindo entre varetas destroçadas, e nós ríamos como loucos enquanto nos ensopávamos, pensando que um guarda-chuva encontrado numa praça devia morrer dignamente num parque, não podendo entrar no ciclo ignóbil da lata de lixo (…)”. Isso se você escolher começar pelo início, claro. Caso siga o quebra-cabeça proposto por Cortázar, sinto muito, a obsessão do narrador do capítulo 73 é um mero parafuso. Não qualquer parafuso, mas um parafuso. E não há nada menos poético e mais funcional do que um parafuso, você me diz. Enquanto concordo, alguém dirá que não aprendi nada com a literatura. Não é o meu caso.

Com a eficácia comprovada do sucesso das pequenas obsessões em me tirar de grandes enrascadas e antevendo o inevitável fracasso ao falar de um tema tão clichê, insisto mais um pouco. Como posso morar há tanto tempo em Curitiba e ainda não ter escrito sobre guarda-chuvas, ou pior, não ter um guarda-chuvas na bolsa para chamar de meu? E é aí que eu lembro. Teve aquele. Aquele guarda-chuva transparente, comprado em algum antiquário, que me acompanhou na sua breve história comigo meses antes da deflagração da pandemia. Eu exibia orgulhosa o artefato decididamente cafona sabendo que ele não passaria incólume diante de qualquer outro exemplar, liso, sem graça e sem fru-frus. Eu falharia ao tentar descrever melhor do que Domingos Pellegrini ao falar de um guarda-chuva: “São apenas algumas varetas, um cabo, um pano, mas armados com talentosa engenharia. Tão fino e esquivo, quando desnecessário, tão amplo quando é preciso.”. Não o meu. Aproveitando-se de sua transparência, aquele exemplar portentoso tinha um arco maior que o comum. Eu me sentia verdadeiramente protegida e com total visibilidade da cidade.. Como quando uma criança começa a usar óculos escuros. Deve ser assim que as pessoas se sentem num carro conversível em cidades que não chovem. Mas, de novo, não é o meu caso.

O guarda-chuva que eu amei ainda tinha um detalhe: emulava uma renda chantilly e parecia tirado de algum figurino de um filme inspirado na década de 20. A emulação da imitação do fingimento. Andar de guarda-chuva transparente faz a gente fingir que está de fato se protegendo da chuva. Não é todo mundo que gosta de olhar a tempestade se aproximando ou as gotas caindo sobre aquela película que, aparentemente, vai te proteger. E chove muito aqui nessa cidade. Ô, como chove. Ter um guarda-chuva rococó quase fez com que eu me sentisse mais pertencente. Até que eu perdi o tal guarda-chuva. Esqueci e sei exatamente onde. Nessa dança das cidades em que chove, a gente perde um numa esquina e logo recupera outro num café, deixa esse no próximo restaurante e aí vai, nunca de mãos vazias, nunca desprotegida. Mas a cidade não me devolveu aquele guarda-chuva e eu não fiz exatamente as pazes com ela. Acho que foi esse o momento em que a cidade se tornou tão funcional quanto burocrática, um parafuso no meio de uma engrenagem. Nada contra engrenagens, mas eu amo cidades e perder o encantamento por Curitiba foi quase fatal para mim. A engrenagem, a gente sabe, é quase como essa capacidade que a gente precisa desenvolver de se enfiar no meio de uma corda em movimento enquanto duas pessoas giram sem parar para você entrar. Enquanto elas observam você entrar na brincadeira, a sensação é de que você pode ser decapitada pelo brinquedo só de calcular errado. E eu calculei errado o que era necessário para ficar por aqui, a pandemia enebulou tudo. E como choveu. Meia dúzia de amigos, um animal de estimação, alguns amores são o suficiente pra ficar? O cálculo é justamente o que me incomoda em relação aos guarda-chuvas. Devo ter sempre um na bolsa porque a probabilidade de chover é de 50%, mas a probabilidade de a previsão estar errada é de 100%, portanto, em algum momento eu vou me molhar? Ou devo ser otimista? Quando me mudei, trouxe comigo uma mala de roupas, três caixas de livros e uma penteadeira dada pela minha vó, que fez as vezes de escrivaninha por muito tempo. Nem cogitei trazer um guarda-chuva. Nem cogitei que ficaria por tanto tempo. Também não faziam parte da minha profecia os amigos, os amores, os animais de estimação. Aquele tipo de pessoa que só pensa em trabalho e não coloca o imponderável na conta: era exatamente o meu caso.

E se tem uma coisa que eu aprendi com a literatura é que ser monotemático é um saco, mas por mais que a gente tente fugir disso, acabamos orbitando sempre em torno de alguns temas. Também tem aquilo de que a gente nunca começa do início. É o tal do in media res, uma expressão que significa “no meio dos acontecimentos”. E é assim que a gente chega a uma cidade. Suspeito também que seja assim que a gente deixa uma. Dá até vertigem pensar em amarrar todas as pontas soltas. A gente tenta, com muita articulação, escolher bem as palavras. Transformar um item de existência pragmática e destino certo num artigo à prova de esquecimento é tarefa ingrata. Escrever sobre algumas coisas também é tentar colocá-las à prova de esquecimento. E tem coisas que são meio guarda-chuva: feitas para te salvarem de uma garoa, te deixarem em segurança abaixo da próxima marquise e serem esquecidas no banco do táxi que te leva para casa. Talvez eu insista em escrever sobre o guarda-chuva porque preciso ritualizar algum assunto que não caiba nesta crônica, e a Gertrude Stein no meu ouvido dizendo que repetição não existe, ela é apenas um gesto de insistência. Eu consigo, com um pequeno esforço de memória, elencar as casas que morei – e, graças a pais nômades e uma família completamente disfuncional, não foram poucas -, os sofás que tive – sofá é sempre o primeiro item de uma casa, disso eu me lembro -, os livros que perdi – tá, talvez aqui eu esteja exagerando, esta, sim, é tarefa ingrata -, mas nem com todo o esforço do mundo eu sou capaz de contabilizar os guarda-chuvas que perdi em Curitiba, porque, antes disso, também não sou capaz de mapear como eles chegaram às minhas mãos. E digo que perdi porque hoje, numa breve vasculhada na minha casa, constato que precisarei de algum emprestado caso chova – não há um para contar história. Mas não é o caso de Curitiba já que hoje, inacreditavalmente, faz sol.

Sempre ostentei minha aversão a esses seres – unânimes para todo cronista em algum momento da vida – como um traço de coragem, uma característica de forasteira bem adaptada, uma barganha que estabeleci com a cidade: ó, não vou me render ao guarda-chuva, não, você não me molha, eu não te deixo. Acontece que, esses dias, eu me toquei que, a despeito desses objetos fadados, minha casa está cheia de capas de chuva, compradas em shows, em viagens, capas colecionáveis até, algumas ainda embaladas para o caso de. A capa de chuva como uma espécie de garantia que me deixa com as mãos livres. Para escrever e para registrar uma outra cena emoldurada pela água, como se eu ainda fosse imune à previsão de pancadas e tempestades. Com os olhos treinados para ver embaixo d’água, a existência dessas capas me faz constatar que eu talvez não seja tão corajosa assim e que nenhuma história começa exatamente do começo ou termina exatamente no final. Constato também o inevitável: minha boa memória, talvez por conta de algum parafuso, também não vai me salvar da próxima tormenta – e eu continuo achando péssimo que os guarda-chuvas recebam toda essa importância, sabe.

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