Anotações para um (im)possível texto sobre a desaparição da amiga

(imaterial/despeito irônico)

Há uma semana, Márcia me mandou uma mensagem. Queria saber como iam as coisas aqui em Portugal. Resolvi esperar um momento mais tranquilo para não dar uma resposta superficial. Mas antes que o momento propício chegasse, a Marcia fez uma coisa muito feia: morreu. Morreu, assim, sem mais nem menos. Soube disso na sessão de carnes do supermercado. Caramba! não se deve morrer desse jeito, deixando um amigo com uma pergunta no ar. Morrer também implica em responsabilidades para com as pessoas mais próximas. Especialmente os velhos amigos de navegações etílicas, os únicos que não buscaram nada metódico com a gente e, ao contrário, nos abraçaram no fundo do poço. Não, não perdoo a Márcia, ela devia ter esperado eu responder. Depois então diria algo do tipo Bom receber notícias suas, meu querido, agora vou fazer as malas para a viagem, fique bem. E só então partiria desta para – desta para onde vão os mortos, sabe lá, eles preferem não dar notícias sobre o seu paradeiro. Acham melhor nos deixar mareados na mesa cada vez mais silenciosa dos afetos, entre copos e perguntas sem resposta. Os mortos (Márcia agora faz parte do Clube) são muito mal-educados. Ou então são obrigados ao silêncio; vai ver a coisa “lá” é tão boa que eles não podem nos dizer nada, pois se dissessem não ficaríamos nem mais um minuto aqui nesse rés do chão, cercados de baratas metafísicas. Não sei, mas se Sócrates não sabia (só sei que nada sei) nem Shakespeare (… signifying nothing), quem sou eu pra dizer alguma coisa sobre o destino de Márcia?

Acho que tive um pouco de ciúmes. É que para a Márcia, para ela acabou o porre.

(em estilo fantástico. assombro-escape)

O elétrico passou chiando sobre os trilhos, carregado de turistas empalhados. Teru me disse que era estranha aquela chuva fina, não havia nuvens no céu. Atravessamos a Rua do Calhariz e entramos no Minipreço, imbuídos de um triste pressentimento do futuro. Compramos as maçãs azuladas que Teru tanto queria, fui buscar alguma carne para o almoço. Abri a porta da geladeira vertical e não pude estender a mão para pegar nada: em todos os pacotes estava escrito Márcia. Fígados de frango de Márcia, entrecostos de Márcia, borregos de Márcia, bifes do vazio de Márcia. Queria dividir meu espanto com Teru, mas ela se divertia com um bacon em cubinhos de Márcia. Uma velha com cara de ratazana me pegou pela mão e me levou para fora. Caminhei pela rua no estilo da velha, de costas, as mãos e os braços bem abertos, até a Praça Camões. As pessoas nos olhavam com bilhetes nos olhos, recados que queriam nos dar mas murchavam como pétalas. Quando chegamos à praça, demorei a acreditar que sobre os ombros da estátua do grande poeta, lá estava a Márcia, a cavalinho, com cara de moleca. Usava uns óculos hippies de lentes alaranjadas e seu rosto tinha o frescor erótico de quarenta anos atrás, quando a conheci em São Paulo, num boteco da rua Augusta. Márcia galopava Camões e me dizia:

Sabe onde eu deixei o meu isqueiro?

Procurei meu próprio isqueiro, mas Teru, que surgiu em silêncio ao meu lado, apontou para o sol mascando a maçã azulada. Márcia compreendeu. Num gesto único e fluido, como se ela mesma fosse uma chama, tirou um cigarro do bolso e nadou em direção ao sol. Simultaneamente, percebi que percorria minhas veias até dissipar-se num suspiro.

(realismo duro, sem centro para o qual ou a partir do qual)

Estava no Continente do Barreiro, esperando a Rute escolher o melhor peito de frango, quando soube que a Márcia morreu. Uma postagem no Instagram, foto do sujeito ao lado dela num evento qualquer, palavras fofas lamentando a sua morte, mas com a intenção lamentavelmente visível de mostrar que ele (o sujeito) era amigo da grande escritora. Enquanto Rute aguardava na fila de autômatos para pegar umas postas de peixe-espada, pus o celular no bolso e fui buscar o pão.
Márcia foi comida pela osteoporose, desmanchou-se (eu ia dizer implodiu, mas a coisa foi surda, lenta, sem nada de espetacular). Ao contrário do que dizia o post, ela não foi “uma amiga querida e dedicada”, antes uma Boca do Inferno que descia o pau em tudo e todos à sua volta, sem papas na língua. Era isso que a tornava uma pessoa interessante. A Márcia doía na gente. Ela descia o vergalho (maionese light, mais barata) na hipocrisia que deixamos derreter na boca feito hóstia, baixava o sarrafo (tomates lindos sem gosto, cinco) no bom-mocismo dos politicamente corretos que bebem sangue com a altivez de governantas. Mulher vingadora, à prova de filhos. Antimãe protetora da tribo, pedra de fogo necessária para retomar a cidadela perdida em egoísmo e falso moralismo (4 bananas caras da Madeira, vá lá). Uma vez, no lançamento de um livro dela no Cemitério de Automóveis, Márcia bebeu tanto que tivemos de levá-la para casa como um Cristo removido da cruz, despregado de suas próprias palavras. Não era pra menos, devia levar pancada de todo lado: foi a a primeira escritora do Brasil a falar abertamente sobre a sexualidade feminina, “trêmula de ressaca e de tesão” (Caio Fernando de Abreu). Diana caçadora no país dos patriarcas.

Ergui um vidro de piripíri e fiz um brinde a ela.

Chegamos ao caixa. Mais autômatos, bib, bip, bip, produto a produto, pessoa a pessoa, bip, bip, caminhamos para o fim em dízima periódica. Porra, Márcia, penso, lembrando que me esqueci da alface iceberg, porra meu, você podia ter morrido quando eu estivesse deitado, seria mais fácil suportar o seu peso, bip, bip, bip…

(epifania do instante para autor/leitor de pendor laralírico)

Ela pegou os cigarros no bolso do casaco de lã empelotada, amolecido pelos anos como o rosto que os cabelinhos lisos e tingidos de loiro enquadravam. Lembrei daquele retrato do velho Luís XIV com sua vistosa peruca negra (Rigaud), a massa corrompida da carne sob as mechas aneladas de uma juventude fictícia, ridícula. Como o rei, Márcia era baixinha e me olhava de cima pra baixo, mas sua presunção era a de quem não tinha herdado nada e erguera o queixo porque o mundo era estúpido e precisava ser mantido no seu lugar. Por trás dessa pose adquirida em livros e botecos de alto e baixo investimento, entre as pernas de escritores famosos (comi o António Lobo Antunes, ele mentiu que era solteiro) e de vagabundos da pior laia (acabei dando para o poeta “maldito” muito feio que filava canapezinho de caviar nas altas rodas), posando para revistas femininas ou cheirando de joelhos nos banheiros azedos da madrugada, a rainha ruía. Fumava e ruía. Erguia tremendo o copo de chope e ruía. Metia a boca nos escritorezinhos pseudo-obscuros que não sabem usar nem preposição e ruía. Glorificava o seu passado (eu, o Sérgio Sant’Anna e o Rubem Fonseca libertamos o conto) e ruía. Bebida e drogas, um mar revolto de emoções contraditórias e, agora, a osteoporose. Ruía, em grande estilo, a inteligência acesa e vigilante.

Quando se lembrou de que há muito tempo eu era pelo menos aceitável, baixou a guarda. Me olhou com tristeza de menina:

Isso aqui é o meu quintal. Moro aqui perto, na Pires da Mota. Mas vou embora daqui, vou pro interior. Merda, ando precisando de ajuda.

Olhei as árvores submersas do Centro Cultural São Paulo, aquele aquário de artistas encravado no fractal de concreto da pauliceia. Senti o gosto agridoce de todo um mundo que desaparecia. As vozes rebeldes e inventoras da geração de Márcia pouco a pouco dariam lugar aos escritores da indústria ideológica, corretos marqueteiros que colecionavam likes e medalhas. Senti saudades do que não vivi, pois a minha geração foi a do meio, a que não houve. Um raio de sol atravessou a trama das árvores e dourou os cabelos dela. Sua figurinha cansada me olhou com um olhar de medusa que mata e suplica, medusa em queda, ferida pelo próprio orgulho. Márcia colocou uns óculos escuros de aro branco que lhe dava um ar de coruja. Uma gotinha de chope cintilou nos lábios murchos, embalsamados em batom carmim.

Foi a última vez que eu a vi. Márcia foi embora de repente, como se não houvesse mais diferença entre ficar e partir. Vi suas costas arcadas, caminhava com dificuldade na calçada, contra o rio indiferente de carros da Vergueiro. Eu sabia que, àquela altura, ela não ia mais para casa. Não havia mais casa. Sua casa fora um tempo, e esse tempo se fora. Até sumir de vista, passo a passo, devagarzinho para não se quebrar em plena rua, Márcia fez o caminho difícil que nos dispersa de vez na memória alheia.

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