Luto (especialmente para não enlutados)

Dentro do luto há uma lenta e gradual passagem do pretérito perfeito ao pretérito imperfeito. “Eu saí terça à tarde levar Olívia passear de carrinho” vai aos poucos se transformando em “Eu costumava levar Olívia passear de carrinho”.

Mas, sobretudo, dentro do luto há o vazio nascido da impossibilidade de se conjugar novamente o tempo futuro. O futuro não existe, é evidente, mas mergulhamos nossos anseios em sua profundidade inatingível a partir da antecipação feliz de um percurso imaginado e elaborado com frases realizáveis, ainda que incertas, ditas para se ir tomando fôlego. O luto é a certeza de que o incerto é agora inexequível, é a impossibilidade do mergulho, a dissolução do cilindro de oxigênio, a interdição para sempre do percurso. Nunca mais “daqui a pouco levarei Olívia passear de carrinho”. Nunca mais “Olívia lerá aos 20 anos as cartas que para ela escrevi”.

Luto: a infalibilidade do nunca mais, o terror de uma certeza.
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Escrevi que luto é a impossibilidade de se conjugar novamente o tempo futuro. É uma meia verdade. O luto opera através de uma dor devastadora, de uma tristeza em estado de graça, mas essa dor e essa tristeza não são indizíveis. Elas se expressam por meio do mais desértico dos tempos verbais: o desabitado futuro do pretérito (ou condicional). Olívia brincaria, Olívia leria, Olívia seria… Permitindo a expressão do que seria uma luta triunfante, caso não tivesse sido malograda, a língua oferta seu farto cardápio de crueldade, misantropia e desolação.
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O luto não é uma doença, portanto não há cura.
O luto não é um desafio, portanto não há superação.
O luto não é uma luta, portanto não há vitória.
O luto não é um jogo de videogame, portanto não há fases lineares e delimitadas, nem níveis gradativos de dificuldade.
O luto não é mapeável, pois não se limita às superfícies.
O luto não é redutível a conceitos fixos e dicionarizáveis, pois é vivido de formas distintas e conflitantes por cada um.
O luto talvez fosse um tempo, se considerássemos que ele não está parado enquanto fazemos sua travessia, mas que parados estamos nós enquanto ele nos atravessa. Mas tudo isso é metáfora, figura de linguagem, e o luto não é uma figura de linguagem, o luto não é uma abstração.
O luto não é muitas coisas que se pensa que ele é.

O luto pela morte de minha filha está sendo a combinação de muitos sentimentos, todos negativos, fracionados em proporções indefinidas e distintas a cada hora de todos os dias: tristeza, saudade, raiva, frustração, desalento, impotência, indignação, inconformismo, repulsa de quem me oferece como consolo um deus que nunca trocou uma fralda, ordenou o assassinato de um filho alheio e abandonou o próprio para morrer torturado, senso agravado de injustiça por ter lutado uma luta longa, árdua e fracassada, compreensão de que não há justiça, pois a justiça é um conceito humano e o Universo é cego e indiferente, ausência de sentido, ausência de respostas, o terror da certeza, a percepção de um ponto de não retorno, a percepção de que junto com o pequeno corpo de Olívia também incinerou-se aquilo que um dia eu fui.

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Larguei livros pela metade para cuidar de Olívia, declinei de partidas de xadrez, adiei partidas de tênis, abandonei filmes e séries antes de dar play, meus momentos de puro nada esvaíram-se num sem-número de tarefas urgentes, como trocar fraldas, preparar o mamá e preparar os remédios contra insuficiência cardíaca. E agora que durante 4 meses e 14 dias eu agi de forma não egoísta, agora que vivi ciente de que o mundo não acaba no horizonte dos meus pequenos desejos, agora que aprendi a abnegação e o desprendimento, o que fazer com o tempo que novamente tenho à disposição? Agora que a frase literária mais profunda soa como uma futilidade constrangedora, agora que um jogo de tênis desnuda-se até se mostrar como aquilo que é, dois imbecis dando pancadas numa bola, agora que séries são compreendidas como aquilo que são, peças produzidas em série na esteira bem azeitada de uma fábrica.

O que fazer num dia como hoje, em que Olívia completaria seus longos 5 meses de vida?

O que eu vou fazer comigo, agora que aprendi a não viver só para mim?

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Não rangeram os parafusos girando em sentido anti-horário na desmontagem do berço semi-novo.

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O que não se dizer a um enlutado (e o que ele poderia responder, se tivesse forças:

— Olívia está num lugar melhor.
— O único lugar é estar vivo.

— Olívia é agora uma estrela.
— Isso é o que se fala a uma criança que perdeu a avó.

— A Olívia cumpriu sua missão.
— A vida não é um filme do 007.

— Que as boas lembranças possam te confortar.
— É impossível a um faminto encontrar conforto na lembrança de uma refeição.

— A vida é um sopro.
— E no entanto você continua respirando.

— Tem alguma coisa que eu possa falar?
— Não.

— Tem alguma coisa que eu possa fazer?
— Talvez admitir que você faz parte de uma grande impotência coletiva, assumir que ao menos nesse aspecto você é igual a todo mundo e não é capaz de fazer nada.

— Eu não tenho palavras.
— Ninguém tem.

— Te ofereço meu silêncio.
— Aceito. Obrigado. Mas esse silêncio serve apenas para mim. Talvez um outro enlutado precisasse de uma conversa.
— E como descobrir?
— Não sei.

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Compreendo e até agradeço as boas intenções, mas, para ser um pouco irônico, talvez mordaz, há um problema congênito nisso tudo: as boas intenções nem sempre vêm acompanhadas da capacidade de expressá-las adequadamente. O que nos falta é uma Educação Geral Para a Sensibilidade que inclua um olhar atento para as palavras, um entendimento das implicações do que é dito. “A Olívia cumpriu sua missão”. Como assim? Ela morreu com 4 meses de vida. A crueldade pode muito bem vir embrulhada num pacote bonito que impossibilita a visão de seu conteúdo. Se para um réu há diferença substancial entre crime culposo e doloso, para a vítima as coisas continuam horrivelmente na mesma.

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Com olhos turvados de fundura e neblina, o presente entrevê o passado em sua lenta mobilidade de monstro submerso. Como se subtraído por um sofisticado programa de edição, nessa fotografia em que me acho sozinho, tirada anos antes de Olívia nascer, agora parece estar faltando alguém.

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O luto subverte sentidos fixos, rompe entendimentos convencionais. Por exemplo, a dor do luto não é insuportável, como um peso que se pudesse atirar ao chão. A dor do luto é suportável, tiranicamente suportável, porque ela é compulsória, porque não é possível rejeitá-la, porque para esse corte de faca fundo e dilacerador não existe anestesia.

O luto não ensina lição alguma. Nada do que eu não sabia antes eu sei agora. Nada do que eu sabia antes eu esqueci. Não valorizo mais a vida hoje, como acreditariam os banais, do que dez anos antes de Olívia nascer. Não me tornei mais forte, como presumiriam os halterofilistas da alma, nem me tornei uma pessoa melhor, como projetariam charlatões, religiosos e outros sinônimos. O sofrimento pela morte de uma filha não tem nenhum propósito. O luto não é a porcaria de um cursinho pré-vestibular. A dor é só gratuita mesmo.

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Sonhei que Ana e eu iríamos viajar. Estávamos no aeroporto. Embarcávamos. O avião decola, sobrevoa a cidade, sobrevoa um pedaço de mar, entretanto munca atinge plena altitude. Sacolejando, muito próxima à água, a aeronave consegue dar meia-volta e retorna ao ponto de partida. Desembarcamos, assustados, perplexos, sem saber o que tinha acontecido. Perguntamos um ao outro e não sabemos responder. Perguntamos a uma pessoa num balcão e ela não sabe responder. Me viro para Ana e digo: vamos passear aqui nessa cidade mesmo? Ela diz sim. E saímos, de mãos dadas. Mais uma vez, somos só ela e eu.

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De uma frase ouvida de orelhada no supermercado a um refrão insuspeito de uma canção de amor romântico, o luto põe de ponta cabeça as interpretações de qualquer texto que apareça pela frente e faz tudo confluir na direção de uma única chave de significado, como se o líquido das palavras não pudesse senão conformar-se às redesenhadas linhas demarcatórias do novo recipiente.

“Você marcou a minha vida, viveu, morreu na minha história…” não é mais um verso de Tim Maia lamentando um pé na bunda. “A vida é tão rara”, de Lenine, não tem mais nada a ver com críticas à velocidade nas sociedades modernas.

Garanto que os sentidos da máxima de Nietzsche “Quando você encara por muito tempo o abismo, o abismo te encara de volta” serão muito diversos a quem, como eu fiz, lançou as cinzas da filha morta do alto de uma montanha.

Igualmente com o verso de Eliot: “Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó”

Hoje é 7 de abril, Arzírio, e já são 3 meses sem a tua Olívia, e ainda são 3 meses sem a tua Olívia.

“Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança.”

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Palavras: o lençol que estendemos sobre o invisível, na tentativa de percebermos ao menos os seus contornos; a farinha que espalhamos pelo chão para tentar flagrar as pegadas do mundo; a cerca de arame farpado erguida na tentativa de interceptar o fluxo de um rio.

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Luto: a apropriação da gramática do insolúvel.
Luto: o espancamento de um corpo já caído.

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O luto paulatinamente vai assumindo outras formas. A dor, antes revestida pela tinta encarnada do desespero, aos poucos vai absorvendo-a, o sopro morno e constante do tempo botando compressas no que antes era ferida aberta, inflamada. É espantoso como no luto toda a gama de sentimentos é percebida com uma clareza nunca antes experimentada, sua detalhada e altamente complexa constituição ofertando-se como fruta madura à compreensão e aos sentidos. O desespero é o resultado da soma entre o veneno do inconformismo, a corrosividade da impotência mais a revolta pelo paradoxo que é saber não existir injustiça e ao mesmo tempo se sentir injustiçado (a Natureza não planeja, mas a Natureza não hesita). A impotência é o vislumbre da irreversibildade, do nunca mais. O irreversível certo, porém não aceito, é a causa do inconformismo. E a revolta, a reboque dos porquês sem resposta, faz-se presente porque não existe um alvo contra o qual se insurgir, restando apenas um crime sem autor, uma subtração causada pelas contingências, pelo acaso desapaixonado e impessoal reinante no Universo. Pode-se dar quantas voltas filosóficas e metafísicas se desejar, mas não há mistério: o Universo não é uma entidade consciente; o Universo nem existe, é, como diria Pessoa, partes sem um todo. O agravamento do desespero resulta em raiva, que pode resultar em choro convulsivo, silêncio impenetrável ou objetos arremessados contra a parede. Já seu esmorecimento sobrevém moroso, a conta-gotas, num lento processo de purificação cuja fonte é a resignação demoradamente construída na passagem dos dias. Construção que às vezes, quase terminada, simplesmente desmorona, castelo de cartas, tendo que se reerguer do zero, lenta, num ciclo que tende a se repetir se repetir. Como numa fórmula de Einstein, o luto pela morte de um filho é igual a dor elevada ao quadrado + a escuridão multiplicada pelo despropósito. Mas com uma condição sui generis. Uma vez arrefecido o luto, amenizam-se a escuridão e o despropósito, mas não a dor. A dor permanece, intacta. A ferida torna-se cicatriz, mas a cicatriz dói como ferida.

PS: Não quero imaginar o que seria de mim, de nós, se à escuridão e ao sem sentido que é a morte de um filho se reunisse também a culpa, que não sentimos porque fizemos absolutamente tudo o que estava ao nosso alcance pela saúde da Olívia. A cardiopatia, no entanto, era gravíssima e não havia nada a mais que pudéssemos fazer, a não ser cuidá-la, protegê-la, fazê-la sentir-se alegre, confortável e segura. Sou grato à Ciência, à Medicina, ao SUS e aos profissionais do Hospital Pequeno Príncipe, que possibilitaram Olívia sorridente em sua casa por felizes 65 dias.

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Escrever é separar-se das coisas num aceno de adeus.

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