A droga da felicidade

Ontem pela manhã me deitei na areia com a cabeça apoiada em uma pedra, numa praia em ferradura ao pé da Serra da Arrábida. A água cor de esmeralda, as pessoas se divertindo, corpos ao sol, a brisa e as gaivotas me envolviam numa suave dispersão. Não tinha vontade de me concentrar em nada, mas fora até ali com a condição de voltar para casa com uma ideia. Ainda não escrevera a crônica da semana, e não havia mais prazo.

Entre o calor da pele entorpecida e risadas longínquas de crianças, comecei a aventar vagos assuntos. Nada de interessante me ocorria. Além do mais, já questionava a necessidade de impor mais palavras ao mundo.

Para que escrever qualquer coisa diante de tanta paz, tanta beleza?

Diante de mim, o avô e o neto de uns dez anos jogavam frescobol. Mais à frente, adolescentes disputavam lugar num barquinho inflável, derrubando-se uns aos outros no mar. A jovem com água pela cintura mergulhou e, por um instante, sua bunda dourada cintilou e submergiu como o dorso de um golfinho.

Seguindo ao largo um navio esfumado pela distância azulada, adormeci. Acordei com o sol a pino. Sentei-me, peguei o sanduíche de atum que trouxera numa bolsa térmica.

Os adolescentes agora conversavam sentados em círculo. O avô e o neto haviam sumido.

Com a disposição renovada pelo sanduíche, voltei a pensar na crônica. Há dias lutava com o vazio… Por que não me surgia ideia alguma? Embora soubesse a resposta, não queria aceitá-la.

O problema é que ando feliz. Imperceptivelmente, cometi esse erro. Nunca tive tão pouca grana, tão poucos planos ou perspectivas, no entanto fui acometido por uma felicidade tal que vejo na tristeza alheia um vício adquirido. “Todos se lamentam porque sempre nos lamentamos”, me diz ultimamente o evasivo ser de luz em que me transformei. Vivo nas nuvens e, quando alguém se aproxima com lamúrias, meto a viola no saco e vou cantar em outro lugar.

Feliz desse jeito, percebo agora, passo dedos sonhadores na face febril da vida, vejo flores em suas chagas. E já não escrevo nada. Sou o Cândido a ouvir a arenga otimista de um Pangloss imaginário, e se não for expulso ficarei preso a essa felicidade altiva, no melhor dos mundos possíveis, como louco no hospício.

Por outro lado… Por outro lado são raros os momentos felizes, e na maioria das vezes só os reconhecemos depois que voltamos à opacidade habitual. E ali na praia o anfiteatro de pedras da serra, borrifado de arbustos, se voltava para o vasto palco ondulante do mar, onde o tempo dormia no seio do espaço; um nadador anônimo cruzava lentamente a enseada; duas crianças chapinhavam na orla, e eu tinha consciência: a vida, assim desatada de ambições e conflitos, não precisa ser descrita.  

Não escreveria a crônica, portanto, não desta vez. Inventaria uma desculpa para os editores. Diria por exemplo que consumi, em quantidade excessiva, uma droga desconhecida que me deram sem que eu percebesse. Uma combinação pesada de leveza conjugal, trabalho prazeroso e um bom tempo para fazer nada sem culpa alguma. Talvez eles me censurassem, enciumados, porque esse tipo de narcótico é uma obscenidade para quem se esfalfa diante dos terabytes que gerenciam o sistema. Mas então diria que já estava ficando melhor, e que pra semana recuperava a tristeza perdida, encontrava um distúrbio e burilava duas páginas melancólicas e sublimes numa tela em branco.

Aliviado com a decisão, espreguicei-me e resolvi entrar na água. Estava gelada, mas aos poucos me acostumei. De repente ouvi gritos abafados. Quando me voltei para a areia, havia uma confusão perto de onde eu me sentara. O careca musculoso discutia aos brados com a mulher gorda, tatuada nos braços. Ela ameaçava bater-lhe com um guarda-sol em riste; ele abria os braços, como se fosse estapeá-la. As pessoas à sua volta se limitavam a sentar-se e olhar, sedentas de drama.

Dei-lhes as costas e mergulhei. Lá embaixo, o sol retiniu num peixe prateado, que me recusei a comparar com uma adaga.

Sobre o/a autor/a

Rolar para cima