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Duas posses

O tão esperado e desejado primeiro de janeiro chegou e o Brasil – vou dizer metade do país – virou festa a outra metade continuou incrustada na ignorância e no ódio. Melhor dizer: alimentando-se e alimentando os outros de mentiras, ódio, violência e desumanidade.

Este sistema de alimentar-se e retroalimentar-se de mentiras, ódio, violência e desumanidade até onde vai?

Difícil saber. Imaginava que o dia primeiro de janeiro abriria um hiato mais ou menos largo, mas me equivoquei. Sete dias depois, os fascistas, vitaminados pelo ódio pós segundo turno, invadiram a sede dos três poderes e já vimos como deixaram.

Lula teve que reagir com vigor e, sem perder a ternura, endurecer. Até porque muitos chamam este dia 8 de a segunda posse.

A festa do dia primeiro foi – bonita pá – registrada por fotos e textos de muita gente e aqui vou reproduzir a crônica – escrita no dia seguinte da posse – de Janaína Amaral, uma garota de 18 anos, recém entrada na Universidade de Brasília.


Haja coração

O primeiro dia do ano começou com ares de primeiro de vida de um recém-nascido. E foi vivido na intensidade do último dia de um condenado. Qualquer tipo de ressaca de réveillon e privação de sono foram deixados de lado para botar o corpo na rua e presenciar um espetáculo inédito na história do país.

Dizem que quanto mais próximo temporalmente de um evento, mais apaixonada é a percepção dele. E, em se tratando do dia de ontem, não dá pra narrá-lo sem mencionar os olhos cheios e os braços arrepiados de ouvir, em muito tempo, alguém do alto da rampa do Congresso Nacional falar em desigualdade e fome.

Um amigo pediu pra eu escrever uma crônica desse dia, mas eu não tô gostando como isso aqui tá saindo. Vou contar do meu jeito e, se ficar legal, eu chamo de crônica e mando pra ele.

Como brasiliense, eu nunca tinha visto Brasília tão cheia, com tanta gente de fora. Parecia até que essa ilha quadrada, veia seca, cercada de mar de soja, era centro de alguma coisa importante. Tinha gente com camisa de excursão, com nome e tudo! O pessoal vinha vindo em caravana dos extremos do Brasil.

Na rua vendiam pipoca sabor Lula, água do Lula, busto do Lula, camisetas, bandeira do Lula; a toalha, que virou o artigo favorito nessa eleição disparado, talvez pelo fato das pessoas gostarem de ter o corpo enroladinho no rosto simpático daquele homem barbudinho e vermelho dizendo que veio para cuidar de nós, como um papai noel (caso o papai noel não fosse um esquema capitalista de vender Coca-Cola e tivesse a voz gasta por anos de sindicalismo).

Deu vontade gravar na memória todas as camisetas que iam eternizar a lembrança desse momento em alguma gaveta ou foto daqui a alguns anos. Tinha de todos os tipos: “ Lembrança da posse 2023 eu fui!”, “O papai voltou!”, “ Brasil: morte – 2016 nascimento – 2023”, “ Sindicato dos caminhoneiros”, “Vai se fuder, Bolsonaro! E vai se fuder se você gosta dele também”, “ Tu vens, eu já escuto os teus sinais…”, “MST”, “Reforma agrária popular já!”, “Brilha a estrela” “ Fuck Nazis”, “Minha ideologia é floresta em pé”, “Flamengo”, “Chê Guevara”, “O Brasil vai voltar a sorrir”, “LULA”.

Se eu fosse conservadora – e com a cabeça levemente corroída por fake News – também ia ficar com muito medo e ia juntando meus dólares embaixo do colchão, porque é a potência de um homem que já entrou e saiu da prisão e ainda junta tanta gente, fazendo aquelas avenidonas do Lúcio Costa parecerem calçadinha.

A potência de reunir tantas indignações e feridas de uma nação toda erguida em cima de violência e sangue: realmente, isso é de botar pra correr bem longe o miserável que estruturou o desmantelamento e a desgraça dos últimos quatro anos. E fugiu medíocre, covardemente, deixando vácuo, como se nunca tivesse passado ali. Como se ele mesmo pudesse ser uma dessas informações absurdas que se veem na internet e não se sabe a fonte, e nem se pode saber, porque passa, choca e logo some. (Sem anistia! A praça dos três poderes gritava.)

E dessa brecha nasce a entrega de faixa mais linda já feita. Se eu fosse jornalista, diria isso na TV, mesmo não tendo visto todas as anteriores. Foi emocionante! Aline Soares, uma catadora de lixo, mulher preta, entregou a faixa para ele, junto a um grupo que representava todo o povo brasileiro.
Empossar um país que tava possuído. Achei engraçado, mais tarde, no show do Baiana System, uma hora que se armou uma roda de bate-cabeça, eles gritaram: “Exorciza! Exorciza!”.

Foi ótimo, pura fritação, bom pra dançar até encharcar os ossos. O clima era de festa, o palco lindo. E não choveu uma gota, ao contrário da previsão insistente dos repórteres. Janja arrasou no planejamento do festival! Até com as entidades climáticas ela fez contato e assim providenciou o arranjo cromático perfeito de contraste entre azul de céu e amarelo de bandeira. De noite, o céu de Brasília brilhou com estrelas.

Às vezes me preocupo do Lula ser um homem tão apaixonado, imagina que perigo se ele infarta? Tenho boas expectativas, os ministros e ministras muito escolhidos, parece que vai dar certo. Mas me lembro de um professor de história que dizia dos perigos de sermos tão regidos pelos afetos na política. Ao mesmo tempo, vejo que é isso que faz a gente se sentir tão brasileiro: essa corda bamba de sofrimento habitual e esperança.

É o que aparece escrito nas camisetas e o que se faz delas. Dos símbolos. É o que se grita e o que se vive. Política não é isso? O que se vive? Quem morre? Haja coração.

Lula mexe com todos os signos brasileiros: Margareth Menezes cantando ê faraó, o palco de bandeira, as estrelas, a música, o coração com a mão de 4 dedos, o churrasco, a picanha e a cerveja, o beijo na esposa. A própria felicidade. E também própria luta. Talvez Lula saiba ser presidente pela terceira vez porque é um ótimo equilibrista das emoções; e isso só quem é povo brasileiro sabe. Feliz ano novo!

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