A Teoria da Terra Redonda

Ainda crente na ultrapassada noção de que a terra é redonda como uma cebola, um amigo engraçadinho a quem primeiramente mostrei esta crônica caçoou de mim, dizendo que ela saiu redondinha, e que pior mesmo é o caso do Cebolinha, árduo defensor da tela plana. Deixo aqui expressa (e impressa) tal observação espirituosa para que vocês, no fim, depois de percorrerem letra a letra a linearidade intrínseca à escrita através da planura intrínseca ao papel, decidam por si.

Minha teoria (do grego theós = deus + ria, do verbo português “rir”) é que a infundada e esquisita Teoria da Terra Redonda existia apenas para trazer problemas, insolúveis e dispensáveis, às nossas grandes religiões monoteístas, além de ter sido a origem de um problema de ordem mais geral, concernente a toda a humanidade.

Comecemos, pois, com os reveses em que as religiões se debatiam antes de a boa nova ter sido revelada e espalhada − agora sim − pelos quatro cantos do mundo.

Tome o Islamismo. Entre seus pilares fundamentais, um deles é a exigência de que cada muçulmano ore, cinco vezes por dia, com o corpo voltado para a cidade de Meca. Ora, para ser bem-sucedida a realização de tal empresa, é necessário que cada maometano domine a Quibla, isto é, tenha certas coordenadas geográficas sempre à disposição conforme as cinco orações (as Salás) sejam feitas em Amsterdam ou em Pindamonhangaba, sendo os fiéis mais favorecidos aqueles que já se encontram em Meca.

Considerem, portanto, como tudo era mais complicado quando a hipótese de que a Terra fosse redonda ainda estava em voga (modinha), e vejam o tamanho das inconveniências que daí decorriam quando chegava a hora de encaminhar, por via oral, os versículos do Corão até a cidade sagrada, sabendo-se, como todos sabem, que os sons viajam em linha reta.

Ora as palavras do profeta iam aterrissar (¿saturnissar?) em alguma curva dos anéis de Saturno, ora iam perder-se em alguma estrela da constelação de Aquário, e, se bobeasse, era bem capaz que algumas fossem tragadas e destruídas por algum buraco negro desavisado.

Tudo agora, porém, é diferente, e sabemos que aquelas eram preocupações desnecessárias. Iluminados que fomos pelo conhecimento de que a Terra é retinha como o cajado de Maomé e, ¡Allahu Akbar!, está desfeita a impertinência que nos fazia girar em círculos sem que nossas encomendas encontrassem divina recepção em endereço adequado.

Mas não eram só os devotos de Alá que se viam embrulhados com o empecilho de ter que usar geringonças do tipo GPS (do inglês God Please Save me) para cumprir suas obrigações religiosas. Cristãos também tinham assegurada sua parcela de contratempo, nos tempos da Terra redonda. Fazer as orações encontrarem os ouvidos de Javé, que mora no céu, não era tarefa fácil, pois o céu de um cristão habitante do extremo sul do Chile não era o mesmo céu de um cristão esquimó habitante da Groenlândia. Com a alegada esfericidade do planeta, se Deus estava acima da cabeça do esquimó, obviamente estava abaixo dos pés do chileno, donde se conclui o motivo de o horário preferido das orações ter sido o noturno (cada um rezava quando Deus estava em cima). Mas, meus caros, as coisas mudam, o mundo dá voltas, e agora, planificado como está o nosso pálido ponto azul, graças aos persistentes serviços de terraplanagem, todos podem se dar por satisfeitos, pois vivemos todos sob o mesmo céu, morada e repouso do Criador. Com as palavras fluindo sempre na direção correta, Deus pode finalmente atender aos desejos de todos. De todos os cristãos, claro fique, pois estes, como Cristo, são humilíssimos e desprendidos das vãs cobiças, e não haveria onipotência capaz de dar conta dos desejos da totalidade dos humanos, esses insaciáveis.

Delimitados e solucionados os problemas de ordem teológica e eclesiástica, sendo a Terra, como demonstrado, um grande Plano de Deus, passemos agora, e de forma resumida, à solução daquele problema de ordem mais geral, que nos rodeava a todos.

Eu, de minha parte, mesmo por ora não tendo religião alguma, ainda assim acolho com hosanas e salamaleques a auspiciosa verdade da Teoria da Terra Plana. Assevero que você, simplório leitor redondista, mais aquele meu amigo engraçadinho lá de cima, deveriam fazer o mesmo, pois ¿se o planeta realmente desse todas essas supostas voltas sem sentido, se realmente ele ficasse o tempo todo girando irracionalmente em torno de si, em torno do Sol, e, além disso, ainda se inclinasse 23 graus em torno do próprio eixo, como poderíamos deixar de ser tontos?

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