Apontamentos – IX


Curtas memórias

Josué Montello em crônica publicada em 9 de junho de 1956 no Jornal do Brasil escreve: Há duas maneiras de puxar pela memória. Numa, começa-se a convocar lembranças com estas palavras introdutórias: “Por esse tempo…”. Na outra, principia-se em tom mais evocativo assim: “No meu tempo…” e, em seguida acrescenta que pela primeira fórmula o memorialista não passou dos 40 anos.

Eu tranquilamente já me encaixo na segunda fórmula, portanto posso escrever no meu tempo. A idade permite me apoderar do tempo e assim faço. No meu tempo de criança ouvia-se rádio e, no caso, era nossa única fonte de informação.

Pelo rádio ouviam-se jogos de futebol, em que a única coisa verdadeiramente narrada, hoje imagino, era o gol. Não há como descrever tudo que se vê.

Em 1958 tinha menos de 8 anos de idade. Não ouvi falar e tampouco lembro de que alguém tenha largado o cabo da enxada para ir para casa ouvir jogos da Copa do Mundo. Em 1962 idem.
Era assim na roça. Na cidade não sei como era o comportamento, mas imagino que não muito diferente.

Como criança não vivi nada da seleção de 1958. Na questão futebol estava mais preocupado – se é que existia alguma preocupação – em correr, descalço, em campos improvisados, atrás de bolas de meia. Nas vezes em que se matava porco, a bexiga do animal se transformava em bola, que enchíamos de ar – com a boca – e fechávamos com barbante amarrando a entrada dos ureteres e a saída da uretra para não perder o ar. Durava alguns minutos até estourar. E claro que na época eu não sabia o que era ureter e uretra.

Quatro anos depois, em 1962, já com quase 12 anos de idade, aprendi o nome de alguns jogadores, mas não havia a cultura ou a necessidade de largar o cabo da enxada para ouvir os jogos.

A diversão e a briga se davam – depois da Copa, com o Brasil bicampeão – no final do dia, após a labuta da roça e nos finais de semana, quando montávamos os times: todos queriam ser a seleção brasileira e a maioria queria ser o Pelé, mesmo que não fosse preto.

Terminada a escolha do time, e como todos queriam ser a seleção brasileira, nenhum ganhava este título e o jogo, já agora com uma bola de borracha e, às vezes, de capotão, começava. Descalços, em campos improvisados no pasto, de terreno inclinado, cheios de gravetos, guaxumas e bosta de vaca, jogávamos nossa alegria, paixão, alma e às vezes, até a honra. Honra de criança, claro.

Nos dias úteis o jogo terminava com a chegada da noite. Às vezes o final era antecipado por algum pé ou dedo rachado, que o pai e a mãe, apesar de não poderem saber, sempre descobriam. Afinal não dava para não mancar ou mesmo gemer pela dor.

A Copa de maior emoção, para mim, foi a de 1970. Alienado sobre o uso político feito pela ditadura, e já vivendo na cidade, me empolguei e coloquei toda a minha paixão para torcer.

Hoje não assisto mais e vivo sem paixão pelo futebol.


Você sabe o que é escanteio?

Três vezes na semana, em um espaço – misto de academia com fisioterapia – em que a maioria dos homens e das mulheres já são donos do tempo, faço ginástica e alongamentos.

Durante a Copa, como não poderia deixar de ser, o assunto futebol, seleções e jogadores ali também foi tema de conversas.

Mesmo que não quisesse, ouvi o diálogo entre duas senhoras, falando de Neymar. O que falam não sei. Não prestei a atenção.

A conversa se prolonga e lá pelas tantas é interrompida pela “nossa fisioterapeuta”:

– Vocês sabem o que é tiro de meta? – pergunta.

Ambas se olharam e responderam um uníssono não.

A “fisioterapeuta” explicou o que é.

– Como você sabe? – foi a pergunta de uma delas.

– Procurei no google, respondeu e riu. Outra pergunta: vocês sabem o que é escanteio?

Desta vez já não houve silêncio para pensar e buscar uma resposta. Veio o não imediato.

Não satisfeita com o “não”, voltou à carga:

– E impedimento, vocês sabem o que é?

– Não – foi a resposta de ambas.

A “fisioterapeuta” riu e respondeu:

– Tampouco sei. E ainda rindo fez outra pergunta:

– Vocês sabem o que é pênalti?

Nenhuma das duas sabiam e tampouco a que perguntou.

Cada pergunta/resposta era seguida de risadas. Todas riam.

Quieto, ouvindo a conversa, resolvi intervir e expliquei tiro de meta, escanteio, pênalti, impedimento…

Gol não precisei, todas sabiam.

Ao final do diálogo ficamos sabendo que nem elas nem eu estávamos assistindo aos jogos da Copa.


Terminada a Copa creio que a maioria das pessoas, no mundo, ficou sabendo o que é pênalti.

E viva los Hermanos!

Viva los campeones!

E que, em 2023, consigamos viver melhor!


PS: Na roça, pela rádio conheci Pelé, depois assisti pela TV. Um dia fui no Alto da Glória vê-lo jogar contra o Coritiba. Foi a glória.

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