A nudez dos reis

Para Paul Valéry

O conhecido poeta Paul Valéry (1871-1945) escreveu um pequeno ensaio chamado O Problema dos Museus, publicado, veja, em 1931. Nele, faz um elegante desabafo que eu gostaria de colocar na íntegra e encerrar a coluna. Bem melhor um Paul Valéry no Plural do que um mero eu. Mas a voz chata fica me dizendo que assim é muito fácil, que afinal eu estou aqui para escrever algo que tenha saído da minha cabeça, mesmo que – outra voz me diz – eu não seja eu mesmo, que eu não seja apenas eu, eu sou um outro (Rimbaud), eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta (Mário de Andrade), eu sou uma média vetorial mal ajambrada de todas as vozes que entraram e costuraram algum ponto na minha rede sináptico-neuronal (biológica) e subjetiva (biográfica). Enfim, cabe a mim, limitado por esse corpo-sujeito a que atribuíram um nome, o meu nome, bordeado e bordado pela linguagem que desde o nascimento me encharca, expressar um texto novo, feito de combinações inéditas entre palavras, sem que eu seja acusado de plágio, mesmo que, espremendo o sumo do que vou dizer, cheguemos à conclusão de que muitos diriam a mesma coisa, apenas usando as palavras mais à mão.

Paul Valéry. Seu ensaio começa assim: “Não gosto tanto dos museus”. Ele diz isso a partir de uma visita ao Louvre, sonho de fruição ou consumo de boa parte do mundo, pesadelo kitsch de outra parte que pode visitá-lo quando quiser, que já se encheu de passear

“em alguma sala de escultura onde reina uma fria confusão (…). Estou em meio a um tumulto de criaturas congeladas, cada uma exigindo, sem obtê-lo, a inexistência de todas as outras (…). Diante de mim se desenvolve, no silêncio, uma estranha desordem organizada (…). Deixo esse templo das mais nobres volúpias com a cabeça transtornada, as pernas cambaleantes”.

Imagino Valéry (vale ri?) saindo da visita ao Louvre, entrando na padaria da dona Marly, pedindo um brioche e um pingado e falando ao atendente que guarda o lápis na orelha: mon dieu, hômi du ciel, me dexa sentá logo que minhas varrize tão estorrando. Porra, tu dejà entrrô nesse negociô aí da frrente? Ah, nem vá, não compensa, a gente sai zonzo, até achá un banhêrro tu dejà tá se mijondo, les perna lateja, et é quadrro et quadrro et quadrro, esculpturra et esculturra et esculpturra, tu dejà não sabe plus se foi o Delacroix qui esculpiu la mumiá do Egiptô, fui sentar num tal de chevet à tronc e le guardinhá veio atrrás de moá, le chevet tinha mais de dois mil anos. J’avais um chevette 84, que às vezes pegava no trranco. Esse brrioche é de hoje? Café tá quente?

São poucos os que podem se dar ao luxo de fazer do Louvre um retrato tão desdenhoso. Claro, temos uma parte de nós sem acesso sequer a saber o que o Louvre é. Tem quem saiba, mas, de espírito mesquinho e tosco, diga ser a arte coisa de desocupado, viado, qualquer adjetivo do qual tem medo e precisa manter longe. Tem quem saiba e valorize porque sabe que é de bom tom valorizar, embora queira mesmo é visitar Paris para subir na torre e comprar souvenir, então precisa dar uma polida nas aparências e tira lá sua tarde inteira para dar um giro, fazer a selfie com a Monalisa, disfarçar a dor nas pernas mas se regenerar em segundos ao ver a lojinha na saída. Tem quem saiba e goste mesmo de arte, vai lá, se deslumbra, sai dizendo para os amigos que precisava de muito mais tempo, emociona-se, passa uns minutos longos imaginando o Caillebotte passando o pincel naquele assoalho (que está no museu d’Orsay, mas me dei essa licença, os museus são próximos, finge que era uma mostra temporária).

Tem de tudo, enfim.

Mas são poucos os que sabem que o Louvre existe, são sensíveis, ilustrados, bons, e saem de lá afogados no excesso, maldizendo-o mesmo, ainda que com toda a elegância e assertividade, como me pareceu ser o caso do ensaio (o que Valéry disse na padaria da dona Marly, com o brioche meio passado e o café um pouco frio, ninguém sabe, fica para a ficção).

Lamento, mas me conformo, não conseguir nada melhor para dizer do que: “Estou em meio a um tumulto de criaturas congeladas, cada uma exigindo, sem obtê-lo, a inexistência de todas as outras (…). Elas se enciúmam umas das outras e disputam entre si o olhar que lhes aporta a existência”.

Valéry nos faz perceber o quanto somos, qual barro moldável nas mãos de um escultor austero, delineados pelas convenções coletivas, o quanto buscamos um amor social, uma aceitação da comunidade.

Ele se pergunta: “Vim instruir-me ou buscar encantamento, ou, de outro modo, cumprir um dever e satisfazer convenções?”

Não é fácil, afinal, falar sobre a nudez dos reis.

Na fábula – “A roupa nova do imperador” –, o menino, seminu das tantas couraças civilizacionais, misturando coragem e sem-noçãozice, diz que o rei está nu. Para sua sorte, os demais se tocam, riem, inclusive o rei, e tudo acaba em uma grande festa que celebra desmascaramentos e torna risíveis as pomposidades e convenções. Temo que a vida real sempre varrerá para debaixo do tapete da utopia inatingível (hoje até as estrelas andam atingíveis, Quintana, mas a utopia ainda não) esse eureca coletivo, essa epifania que agracia o mundo com a noção de que a velocidade, a simultaneidade dos estímulos, o atulhamento que tampona a subjetividade, paradoxalmente nos impede de ver.

Gritar hoje “o rei está nu” é só mais um grito entre tantos, é como gritar nos ouvidos de alguém no meio da balada: a pessoa responde “arrã” e sai louca se saracoteando. É como, no silêncio da timeline, a pessoa ler e pensar “é mesmo”, e rolar o dedo: “próxima! vamos, entretenha-me”.

Ou faz a pessoa pensar “acho que ele está deprimido”.

Ou faz a pessoa pensar “acho que ele está louco”.

Ou faz a pessoa pensar “acho que ele é chato”.

Cá, como lá: tem de tudo, enfim. Todas as opções estão distantes do insight despertador de “A roupa nova do imperador”.

Valéry já sabia que, com essa atitude diante de uma visita ao Louvre, não angariaria simpatizantes. Nem ele parecia simpatizar consigo mesmo: “Sinto que me torno detestavelmente sincero”. Mas não se refreia, continua detonando o excesso de imagens que, contraditoriamente, cegam: “Que fadiga, digo a mim mesmo, que barbárie! Tudo isso é desumano”.

Não é curioso ver barbárie no Louvre, o núcleo duro do iluminismo civilizatório? Se um zé ruela qualquer fala isso, é espancado pelos civilizados (ops). “Civilização alguma, voluptuosa ou razoável, poderia sozinha ter edificado essa casa da incoerência”. E olha isso aqui: “O ouvido não suportaria dez orquestras ao mesmo tempo”.

Minha tentação é exclamar gozosamente: “mazó, se ele achava isso em 1930, imagina o Valéryzão vivendo hoje!”. Pronto, caí na tentação.

Valéry não detona arte, a obra em sua singularidade, que levou um “milhar de horas” se convertendo em desenhos e pinturas e formas para que pudessem agir sobre nossos sentidos. O que ele critica é que tais obras se amontoam numa sala, pisam-se mutuamente nos pés, dão cotoveladas, furam ozóio umas das outras e ficam precisando gritar “olha pra mim!”, “não, olha pra mim, eu sou mais bonita!”, “ah, tá, você parece um rascunho, teu nariz tá pra um lado e o olho pro outro”, “ô, do assoalho, fica na tua!”, “ih, lá vem a rainhazinha querendo botar banca!”, “rapaz, você já se viu no espelho para falar isso?”.

A Monalisa só segura a gargalhada, a Vênus de Milo tem vontade de sair no tapa com todo mundo, mas está impossibilitada, e a liberdade, que guiava o povo, usa a bleu-blanc-rouge para acenar e tentar aparecer.

Em resumo, é exatamente a nossa vida hoje!

Em vez de fazer história, fazemos stories.

E o Valéry:

“Devemos fatalmente sucumbir. O que fazer? Tornamo-nos superficiais”.

E é – ou seria – aí que eu tinha pensado em entrar no assunto do ensaio de hoje: coronavírus e linguagevírus: aspectos biológicos e biográficos da contaminação: vírus e ideias fixas: asfixia, hipóxia, hiperventilação: pandemia e infodemia.

Mas resolvi parar, deixo ao leitor o convite para as conexões. Saio de cena usando a despedida de Valéry, de que, por querer torná-la minha, subtraio as aspas:

– Adeus, me diz esse pensamento; não irei mais longe.

***

Usei a tradução de Sônia Salzstein.

VALÉRY, Paul. “Le problème des musées”. In: HYTIER, Jean (Ed.). Paul Valéry – Oeuvres II. Paris: Éditions Gallimard, 1960, p. 1290-1293.


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