Janelas verdes

A rua é a mesma que vi daquela vez, mas é outra. Nada mudou por fora, os casarões continuam graves, como que voltados para o interior senhorial, os paralelepípedos polidos pelo vai e vem incansável do tráfego humano, as ruazinhas transversais que levam ao labirinto das ladeiras, o respiro sereno das pracinhas – a rua está assim há séculos na verdade. Mas só hoje percebo como é bela sua velhice decantada. Parece que, em algum momento, tesouro de naufrágio, a Rua das Janelas Verdes foi alçada de águas fundas. E, diante de meu espanto, cintila agora inoxidável ao sol.

Estive aqui e não estive?

Foi há dois anos, quando cheguei do Brasil. As janelas verdes, se bem me lembro, não tinham cor. Os azulejos ricos e variados que revestem as frontarias misturavam-se num formigueiro de arabescos. Os casarões não exibiam altura, volume, formavam aquela massa única de peso e sombra. Nem as pessoas que andavam por aqui se distinguiam umas das outras, passavam por mim projeções de aflição e sonho.

A rua termina, sento-me num banco do Jardim 9 de Abril. Estendo os braços no encosto, sigo sobre o Tejo um veleiro levado pela luz da vela. Então recordo o que aconteceu. Eu sofria o apagado viço de um amor que trouxera como ramalhete seco através do oceano.  E deixara meu país roído pelos dentinhos de um rato, eleito através das manobras da gataria nacional.

Não, não podia ver janelas verdes, só olhar para dentro.

Entretanto, depois disso, dia após dia gastei meus sapatos pelas ladeiras de Lisboa. Entrevi através das cortinas a vaidade herdada de “barões gritando contos de réis”, como disse Garret. Recebi afetos igualmente antigos, equilibrados entre a vaga doçura e a acidez sutil dos vinhos generosos. Conheci os navios negreiros dos trabalhadores que vêm à cidade consumir-se na máquina dos brancos, sempre e ainda. Percorri mudo os ecos palacianos do passado violento que nos engendrou. Comi o cozido à portuguesa castiço de velhinhas pobres que vivem em calorosas casas de Lilliput…

Se já não me vejo “fora”, talvez não venha a estar plenamente “dentro”. Isso, porém, não é novo: não andei sempre pelo mundo como se percorresse o longo caminho de casa?

Esqueci o veleiro, procuro-o. Sumiu sem que eu visse. Como o ramalhete, que algum dia abandonei à correnteza.

Tive a sorte de encontrar outro amor; um afeto calmo e duradouro floresceu de nossas mãos cuidadosas.

E lá, para além das águas, meu povo afunda, mas não morre. Quantas vezes já foi à lama, e ergueu-se, inoxidável ao sol?


Para ir além

A nudez dos reis

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