Lia – Capítulo 79

A cena é uma cozinha. Amarela. Pia de esmalte, cuba e balcão. Torneira saindo reta da parede. Fogão, geladeira, uma mesa e três cadeiras. Cesto de lixo. Calendário atrás da porta. Armários, presumivelmente, na parede que teria que ser retirada para acessarmos a cena. Digamos assim. Um artifício.

É difícil determinar o horário em que a cena se dá. A janela, à direita da parede do fundo, dá para outro ambiente, possivelmente uma área de serviço, e a luz que chega dali parece artificial. Pode ser muito cedo de manhã num dia frio. Pode ser o meio da madrugada. Pode ser o começo da noite. A luz quente das lâmpadas incandescentes faz com que todo o amarelo da cozinha se veja como que sublinhado. Lia está vestida de azul. Com uma blusa de lã que parece feita em casa. Frouxa. Velha. Como, também, se tivesse perdido muito peso recentemente. A blusa quase lhe passa do meio das coxas.
Há um homem na cozinha com ela. A obscuridade e a distância não nos permitem muito bem identificar quem pudesse ser esse homem. Se filho, marido… um homem. Tanto faz, afinal.

Lia acaba de encerrar uma longa fala dirigida a ele. Quando a luz (digamos assim) se acende na cena, para nós, ela está diretamente de frente para ele e acaba de emitir sua última palavra. As gotas de saliva que saíram de sua boca ainda podem ser vistas no ar.

Segue-se um silêncio pesado. O homem, sentado numa das cadeiras da mesa redonda, fecha os olhos com força e passa as duas mãos pela cabeça. Ele levanta e começa a falar com Lia.
Ela o interrompe. Nitidamente foi uma interrupção. Brusca.
E ela retoma a fala aparentemente do ponto em que tinha se detido. Ele por mais de uma vez tenta retomar a palavra com frases entrecortadas que buscam um espaço entre o que Lia emite. Um espaço que ele não parece conseguir escavar.
De novo com as mãos no cabelo.

Lia se aproxima dele, que levanta da cadeira com uma linguagem corporal que parece especialmente preocupada em diminuir sua estatura, em negar o fato de que está levantando, em não se aproveitar de ser quase dois palmos mais alto que ela. Levantou da cadeira, é o que nos parece, por ter se sentido acuado pela presença de Lia logo à sua frente (e logo acima). Mas não quer tomar essa posição.

Não está reagindo. Não está “contra-atacando”. Ele está fugindo, acuado. Vira de costas para ela no mesmo gesto em que se põe de pé.

Ela, sem parar de gritar (sim, agora é inequívoco que é mais justo descrever assim o que sai do buraco negro de sua boca), põe uma mão no ombro direito do homem, que gira como que acionado por ela e volta a ficar de frente para a boca escancarada.

Ele parece começar outra tentativa de retomar a palavra e simultaneamente estende a mão direita para tocar a de Lia, que acaba de lhe sair do ombro. Lia recolhe a mão e seu corpo todo se enrijece. Ela se faz ereta como que para aumentar a distância entre eles sem dar um passo atrás. Para de falar subitamente.
Outro silêncio que se alonga demais.

O homem, cabisbaixo, como que enovelado em si mesmo, move os lábios sem erguer a cabeça.

Lia vocifera outra coisa.

Ele ergue a cabeça contrafeito. Algo trêmulo.

Antes mesmo de abrir a boca toma no meio do rosto o impacto de outra rajada de palavras furiosas. Seu rosto registra nitidamente o impacto da nova rajada de palavras furiosas.

Quando elas se encerram ele ergue de leve a mão direita. Como que pedindo distância. Está quase contra a parede. Lia não tira dele os olhos quentes. Rijos. E subitamente ele desmancha.

Lágrimas lhe explodem dos olhos. Ele treme. Baba. Perde as pernas, cai de joelhos. Mãos no rosto. Um monte convulso de incapacidade reativa.

É a vez de Lia fechar bem os olhos. Jogar a cabeça para trás. Respirar fundo uma, duas vezes. Conter o esgar que lhe torce a boca, estender uma mão na direção da cabeça do homem.

Homem. Filho, marido, inimigo. Tanto faz.

Blecaute.

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