Lia – Capítulo 12

Eles se conheciam já havia algum tempo. Se falavam. Se conheciam, afinal, mas só. Lia nunca deu grandes bolas para ele. Simplesmente não prestava muita atenção. Era um sujeito. Uma pessoa a mais na vida. Alguém, sem maiores motivos de ódio, rancor, estima, sem razões quaisquer de amor.

Eduardo, ele se chamava.

E aquele dia também não tinha grandes coisas de excepcionalidade. Nada parecia fazer supor o tamanho da mudança que estava para acontecer. Dia normal, situação normal, nenhuma importância nas tarefas, nos contextos e nem mesmo na conversa. Anos depois, ela nem lembrava por que tinham ficado os dois ali sozinhos, o que teria gerado o pretexto para a conversa, nem qual seria o assunto. Lembrava só que, quando sentiu que sua vida mudava para sempre, estavam os dois conversando sozinhos. E sozinhos de uma maneira irreal, de um modo que só pode existir na lembrança, que só cabe, que só é concebível na distorção que opera a lente da memória. Como naquelas fotos de foco forçado, em que apenas os dois estivessem nitidamente delineados, contra um fundo frouxo, indefinido, composto talvez por pessoas, paisagem; por plantas, ruído. Um cenário. Um abismo. Um mundo inteiro. Mas apenas os dois percebidos em linhas claras, perfeitas.
Pois se nem mesmo a fala… Nem mesmo o assunto da conversa ela recorda.

Eram os dois ali trocando ideias, talvez discutindo algo recente, quem sabe falando mal de um conhecido, mencionando o tempo inconstante, esse frio fora de hora (é Curitiba, sempre terá havido algum frio fora de hora). E ainda nada na postura dos dois, nada no intervalo imóvel de ar entre eles parecia fazer supor que algo gigante estivesse para acontecer. Nada estava tenso, nada se entendia, nem prenunciava. Não havia “clima”.

Cinza. Como o Eduardo, até ali. Sempre parte daquele fundo borrado, até ali. Fácil, leve, leviano, simples, esquecível Eduardo. Mas aí veio o gesto. Sem contexto, sem cenário, sem memória, ela começa aqui. A lembrança que Lia guardou por toda a vida, em ricos detalhes. Sinestésicos, cheios, harmônicos. A mão do Eduardo que sobe, que se dirige ao rosto dela.

Nem mesmo da expressão nos olhos dele ela pode lembrar. Estavam olhando nos dela? Desviados de lado pensando em outra coisa, acompanhando uma outra história? Que peso ele deu àquele gesto que derrubou uma pilastra dentro dela?

A mão sobe, vem até o lado esquerdo do rosto de Lia, com carinho, por reflexo, impensada ou detida, retira dali uma mecha de cabelo que então prende atrás da orelha dela. Eduardo tinha irmãs. Lia lembra nitidamente de pensar apenas nisso enquanto parava de falar, perdia o fôlego, tropeçava uma sístole, fervilhava em arrepios. Ele tinha uma irmã, devia estar acostumado a esses cuidados, tais gestos… era nada.

Mas o resto todo do seu corpo fremia que não, dizia que sim. Ela quase podia jurar, mesmo anos e anos depois, que fechou de leve os olhos naquele momento. Passou a língua pela boca. Engoliu em seco ao sentir o toque de pouco mais que a ponta dos dedos no zigoma esquerdo, ao acompanhar o movimento de seu cabelo naquela mão, rumo ao flanco da face, até atrás da orelha. Um toque. Um afago que a fez lembrar que tinha pernas. Joelhos.

Um único gesto que tirou todo o mundo do foco e deixou nele apenas aquele novo Eduardo. Que agora via pela primeira vez. Um único lance de dados, que fez Lia entender plenamente, irreversivelmente, que o dono daqueles dedos, daquele gesto, era o homem da sua vida, e que apenas com ele seria feliz.

Mas não era. E não foi.

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