Extinção

Naquela manhã, acordou às 7 horas e deixou-se ficar na cama por alguns momentos, sentindo-se pleno, íntegro, indivisível; apreciava, inclusive, o antes inconveniente toque do despertador do celular, e mentalmente cantarolou aquela melodia maquinal (“tam tam tam tam tam tamramramram tam tam tam tam”). Então saltou da cama com a disposição de um saltimbanco e arreganhou a janela para a cidade que se levantava; tudo pareceu-lhe agradável como uma fatia de bolo. Um sorriso da mais extrema satisfação coseu-se ao seu rosto, os músculos da face parecendo dispor de uma flexibilidade de bailarina.

Não se importou com o fato de aquele início de manhã não dar qualquer motivo para tão absoluto contentamento. O dia começava nublado, com a aparência baça e desagradável de inox engordurado, e com um chuvisco que fazia pensar em polvilho d’água – o tipo de chuvisco que em dias ruins anuncia desde cedo que as próximas horas serão irremediavelmente uma droga. Em sua felicidade pueril, porém, ele continuava a exibir seu grande e resoluto sorriso, enquanto à janela deixava a garoa lhe mosquear a cara (uma cena de filme ruim; a vida, às vezes, se parece muito com má literatura.)

Às 7h30, após barbear-se com esmero, escovar os dentes e entrar em calças e camisa, tomou o mais saboroso café da manhã de sua vida – pão, manteiga, café solúvel puro – e deu uma olhada no jornal. Como nunca fizera antes, comentou algumas notícias com o cachorro. Os cães, notadamente, não são reconhecidos no reino animal por serem seres muitíssimo bem informados, e talvez por isso Beirute – era esse o nome besta do cachorro – tenha achado mais conveniente guardar silêncio.

Contentou-se em abanar o rabinho e deitar-se aos pés do dono – que continuou a falar-lhe sobre política nacional e internacional, e sobre uma marquise que havia despencado em um bairro próximo. Mantinha o mesmo ar pleno e satisfeito de quando acordara, apesar de a cada link acessado uma nova bomba lhe ser atirada ao colo. O mundo ia de mal a pior, segundo o noticiário; fome, peste e guerra – talvez fosse o Apocalipse. Se fosse, tanto fazia. Anunciasse o jornal o fim do mundo para o dia seguinte e ele provavelmente apenas balançaria a cabeça de um lado a outro, um leve sorriso nos lábios, como quem diz que “tudo bem, que se há de fazer? De qualquer forma não poderia durar para sempre, poderia?”.

Às 8 horas, Beirute se pôs a passear pela sala minúscula, a língua sôfrega pendendo da boca, enquanto ele lavava a louça, e mais uma vez cantarolava. Terminada a tarefa, agarrou serelepe a mochila, afagou a cabeça do cachorro e solicitou, rindo, que na sua ausência ele se comportasse como o cãozinho simpático que era. Apanhou as chaves, abriu a porta e saiu para os corredores bege-prédio-de-apartamentos do prédio de apartamentos bege em que morava.

No alto da escada, tropeçou nos cadarços dos sapatos que havia esquecido de amarrar, distraído enquanto se entretinha com a própria felicidade. Rolou por quatorze degraus e estatelou-se frente à porta que dava para a rua.

Morreu aos 30 anos, em decorrência de um traumatismo, no dia em que havia finalmente tomado a decisão de esmurrar seu chefe.

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