Arrgh!

Aconteceu doze anos atrás e eu ainda não superei. Não superei ao ponto de, às vezes, lembrar o ocorrido antes de ir dormir e perder o sono. Ao ponto de ficar vermelha quando a memória vem, sutil como um gongo. De querer ranger meus dentes quando alguém que conhece a história a menciona casualmente em um evento social.

Mas está na hora de enfrentar esse dragão de sete cabeças quase mitológico – filho da combinação de arrependimento com vergonha mortal – por isso vou contá-la pra você.

Doze anos atrás, eu era uma garota de doze anos. Eu ia pra escola de ônibus do colégio, como uma garota de doze anos. Eu ficava encantada com a indiferença dos adolescentes, como uma garota de doze anos. Eu fingia ser adulta, mas ainda brincava sozinha de boneca e viajava nos mundos de fantasia de livros infanto-juvenis como uma garota de doze anos. Mas eu não me apaixonei como uma garota de doze anos, eu me apaixonei como uma mulher. É verdade, eu escrevia nossas iniciais dentro de um coração de praticamente todos os meus cadernos (até meu diário estava de saco cheio) que nem as meninas fazem nos filmes. Mas o que eu sentia por dentro não podia ser comparado com algo infantil ou efêmero.

Na verdade eu tinha meus olhos pregados no mesmo menino desde os meros oito anos de idade, quando a professora de história da segunda série pediu que nós nos apresentássemos em sala. Eu lembro do quadro ter desenhos de ovelhas e árvores de um lado, embaixo da palavra RURAL, e traços de giz representando prédios do outro, com a palavra URBANO quando eu o vi pela primeira vez.

Ele era um tão branco quanto o giz da lousa, com cabelos castanhos como chocolate e uma jaqueta vermelha e cinza, que eventualmente percebi ser sua peça de roupa mais usada. Seu cabelo tinha um corte fora do comum, que teria sido de curumim se as mechas não caíssem de maneira descuidada e relaxada sobre o rosto, em volta dos olhos. Os olhos foram a armadilha principal. Azuis parecidos com o tom de céu do papel de parede principal do Windows, aquele encontrado em todos os computadores na virada do século. Aquela paisagem recebeu o nome de Bliss (felicidade perfeita), com sua harmonização de morros verdes. Em todos meus anos de vida nunca achei um azul tão cativante quanto aquele. Era hipnotizante e eu simplesmente não consegui parar de olhar pelos próximos quatro anos.

Nós nos tornamos amigos facilmente, o que, pensando bem, foi até impressionante. Eu era quieta, tão pequena que ganhei o apelido de “formiga” contra minha vontade, e passava meu tempo livre sozinha. Mas toda saída da escola era eu e ele. Ocasionalmente, um amigo em comum estava junto, o que deixava o ar cheio de antecipação menos pesado. Eu lia, quieta em meu canto, muitas vezes nervosa demais para iniciar a conversa, então  enterrava o rosto em um livro grosso. Às vezes ele esperava uma deixa para perguntar o que era.  

Crianças maldosas ocasionalmente provocavam. Abriram minha mochila e leram meu diário em voz alta, que ele mesmo fez questão de devolver pra mim, nunca me tratando diferente mesmo descobrindo o que estava escrito nele. Era humilhante. O garoto loirinho com cabelo Justin Bieber da classe – antes mesmo do Justin Bieber ser – falava que Olhos Azuis tinha cheiro de borracha, mas ele estava errado.

Na realidade ele tinha, ocasionalmente, um cheiro de comida refogada, do tipo que nos faz salivar quando chegamos em casa com fome. Provavelmente porque sua mãe trabalhava fazendo tortas. Seus dentes eram simétricos (em contraste com os meus, presos a um aparelho fixo) mas levemente amarelados, o deixando com um charmoso sorriso imperfeito. Ele tinha duas irmãs mais velhas, uma delas era até casada.

“Não consigo imaginar minha irmã casada”, eu dizia.

Um ano depois estávamos ainda mais próximos. Eu me soltava fácil com ele, ao ponto de sermos expulsos da aula de frações da professora Gilda, por gargalharmos em sala e atrapalhar o raciocínio dos colegas. Ele desenhava carros nos meus cadernos quando deitava ao meu lado na saída e eu parei de sentir a necessidade de desenhar corações. Nas férias, sentia tanta saudade dele que minha caixa torácica parecia apertar meu peito. Muitas vezes eu chorava no banheiro de casa.

No ano seguinte, quando eu estava com dez anos e ele quase com onze, eventos turbulentos com a minha família me impulsionaram a ser uma garota desesperada por atenção. Quando estava em casa, eu focava minha mente em Olhos Azuis para fugir dos ruídos à minha volta. Na escola, eu passei a observá-lo no recreio. Todo momento sentia uma necessidade de estar perto dele inexplicável, que se tornou cansativa para o garoto bem rápido. Ele passou a me evitar durante boa parte do tempo, ignorava meus convites para idas ao cinema em grupo ou minha festa à fantasia. Quando eu bati o pé, dando outro convite pra ele, Olhos Azuis me olhou no olho e rasgou o convite rosa com bolinhas na maior serenidade. Fiquei 3 dias (uma eternidade para uma criança) sem falar com ele. Até que o ouvi planejando um evento de paintball com todos seus amigos em uma rodinha. Na maior cara de pau, perguntei se poderia ir.

“É só pra meninos”, ele disse.

“Eu não ligo”, sorri, completamente sem noção.

“Ah, que seja. Tó!” Ele me entregou o convite.

No sábado daquela semana eu apareci de maria chiquinha e com um sorriso enorme no rosto, para um evento que envolvia armas falsas, gritos, roupa pesada e, eventualmente, hematomas. E eu percebi que eu realmente era a única menina ali. Os garotos prosseguiram normalmente e Olhos Azuis me olhava com satisfação, mentalmente dizendo “viu, você conseguiu o que queria, sua mimada chata”. Fomos divididos em times e jogamos. Como nos jogos de queimada na escola, eu não tinha vantagem em relação à força ou mira, mas sim com meu tamanho e agilidade. Surpreendentemente, fui uma das últimas que sobraram do time e dei a satisfação de Olhos Azuis poder se frustrar comigo no campo sem culpa. A situação foi tão besta que no final do dia rimos juntos e eu nunca mais exigi nada dele de novo.

Na escola, aprendi a respeitar seu espaço e comecei a conversar mais com a garota do meu lado.

Na quinta série, as coisas começaram a ficar mais interessantes para mim. Encontrei um sólido grupo de cinco amigos pela primeira vez de forma tão natural que eu nem lembrava como tinha chegado àquele ponto. Eu fiquei melhor amiga da garota com quem conversava na sala e a chamava pra minha casa, junto com outras crianças – inclusive meninos! Íamos ao cinema, parques, sorveteria. Até o Justin Bieber loiro havia se juntado ao grupo. Eu ainda estava aprendendo como agir perto do sexo oposto.

Aos onze anos, eu já  tinha um iPod de segunda mão. Um dia estávamos no shopping, prontos para ver um filme no cinema quando Olhos Azuis perguntou o que eu ouvia nele.

“Britney Spears. Demi Lovato. Hannah Montana”, falei, com obviedade. Ele fez uma careta.

“Tente isso aqui”, de seu bolso ele tirou um celular Motorola e me mostrou suas bandas favoritas. Red Hot Chilli Peppers. The Offspring. Linkin Park. Pink Floyd. Eu baixei as músicas em casa e não ouvi outra coisa. Claro que havia feito isso esperando pela oportunidade dele olhar meu iPod de novo, mas as músicas realmente se tornaram cativantes e até aprendi as letras de My Chemical Romance.

Um dia me peguei olhando para as outras duas meninas do grupo e percebi que eu não era nada como elas. Eram cheirosas, femininas e bonitas sem tentar, independente se estávamos em uma festa ou em um parque. Eu tinha algo mais próximo de uma juba do que cabelo, usava boné e escondia meu rosto. Em uma tentativa de parecer mais atraente, cheguei a colocar um vestido vermelho de festa velho da minha irmã para encontrar o grupo na sorveteria. Eu estava usando um par de tênis esportivo, pois ainda queria estar confortável e parecer que eu não estava tentando tanto — o que só deu o efeito oposto. Se meus amigos, vestidos com camisetas ou até mesmo uniforme escolar, me acharam ridícula, ninguém disse nada. Mas Olhos Azuis conversou comigo como se nada estivesse diferente.

Eu cheguei a um ponto que eu estava confortável com a minha posição de amizade na vida dele. Afinal de contas, falávamos todo dia, nos víamos fora da escola e eu comecei a acreditar que querer mais do que isso seria pedir demais. Eu podia fantasiar com ele na minha cabeça no meu tempo livre e ainda ter ele na minha vida, o que parecia ser o melhor dos dois mundos. Afinal, não era segredo pra ninguém como eu me sentia, e se ele não havia se assustado até agora aquilo parecia mais do que bom o suficiente.

Até um dia, agora na sexta série, tudo mudou.

A saída da escola havia virado o ponto alto de socialização de cada dia. Se no recreio os meninos corriam para o campo de futebol, as meninas se encontravam para fofocar e o resto estava na fila da cantina, então a saída se tornou o momento em que todos estavam juntos para conversar antes de ir embora. Os sons altos de conversas e cadeiras se arrastando para formar enormes rodas com alunos de diferentes salas e séries quase abafavam os nomes ditos em um microfone de qual criança os pais haviam chegado para buscar.

As crianças consideradas populares eram tão descoladas ao ponto de poderem esperar os pais do lado de fora da escola, na rua, se apoiando no muro e comprando quantos chicletes queriam de vendedores ambulantes. Geralmente isso era algo reservado para quem estava no último ano, mas se você tinha pais legais como Olhos Azuis tinha, você tinha autorização de esperar sua mãe no lado de fora ou até sair da escola sozinho.

Devia ser uma quarta-feira quando praticamente todos da sexta série estavam em uma roda misturada com alunos mais velhos. Eu conversava com as meninas ao meu lado, e os garotos do outro lado da roda enquanto, aos poucos, a roda se esvaziava cada vez mais à medida que os pais chegavam. Quando sobrei com mais cinco pessoas da roda, Olhos Azuis apareceu na entrada do saguão e veio em nossa direção.

“Eu estou indo ao shopping aqui do lado, alguém quer ir junto?”

Ninguém respondeu. As meninas que estavam comigo me encaravam intensamente, mas eu não entendi.

Ele perguntou de novo.

“Posso falar com você no banheiro um minutinho?”, uma das meninas me perguntou, já me arrastando pelo braço. Antes que eu pudesse dizer algo, ela já estava me fazendo uma pergunta que parecia uma bronca:

“Você é lerda por acaso? Ele está chamando você!”

“Q-que?”, perguntei para ela. Ana, era seu nome. Naquele ano fui em uma festa do pijama que ela havia me chamado com outras meninas da sala. Nunca tinha ido a uma festa do pijama antes. Gostava dela.

“Sim, Antonia ele gosta de você. Tá tão óbvio…”

“Está?”

“Sim! Mas ele não vai te chamar diretamente, então abriu o convite pra todo mundo. Mas você é quem tem que aceitar.”

Por um segundo considerei que era uma pegadinha. Piadas maldosas já haviam acontecido comigo antes. Mas ela não era o tipo de pessoa que fazia isso. Nós saímos do banheiro e vi Olhos Azuis começar a se virar para ir embora.

“Espera. Eu vou”, eu falei sem processar o que aquelas palavras queriam dizer.

Ele sorriu e vi até seu canino. Nunca havia reparado no canino dele antes.

“Que ótimo. Estou pensando em comer lá.”

“Antonia, você tem autorização dos seus pais para sair?” Perguntou o segurança da escola, que me conhecia por me fazer companhia diariamente.

“Tenho sim, espera.” Fingi procurar o papel no bolso da mochila. “Acho que esqueci em casa”, falei nervosa. Eu nunca mentia.

 “Tudo bem, mas traga amanhã, tá bem?”

Não sei se ele havia suspeitado por nunca ter me visto sair da escola antes e havia me liberado por simpatia, ou se realmente acreditou, mas quando eu vi já estava fora do portão.

Andando na rua ao seu lado, percebi que nunca tinha ficado sozinha com Olhos Azuis antes. Até quando éramos os últimos a ir embora havia professores por perto. Ali éramos só nós. Ele vai me beijar. O pensamento veio como uma bala, perfurando qualquer outra possibilidade que vivia em minha mente. Não era um desejo. Era uma certeza. Ficamos em silêncio na maior parte do caminho, carregando nossas mochilas e andando reto. Eu nunca havia beijado um menino antes. Nem sabia como funcionava. Nem sabia como a língua deveria mexer. E se eu fizesse errado? E se ele nunca mais olhasse pra minha cara? Eu sentia o corpo dele do meu lado sem nem precisar olhar. Era como se ele emanasse calor. Então fiquei com medo de começar a suar.

Foi então que tirei os olhos da calçada, e olhei em volta para o que eu estava fazendo. Estava indo ao shopping. Com um menino. Com o menino. Sem meu pai saber.

“Eu acho que preciso voltar antes do meu pai chegar. Ele está vindo me buscar”.

“Okay, sem problema”, ele disse com sua voz rouca. Ele me lembrava um cantor de rock às vezes. Despreocupado, com uma voz mais velha do que ele. Ele até tocava violão!

Por algum motivo, não me ocorreu ligar para meu pai me buscar no shopping. Não sei se ele ficaria bravo ou poderia estragar tudo. Mas parecia ser mais seguro não mencionar, ou foi o que eu pensei. Durante as seis quadras do caminho (eu provavelmente nunca havia andando tanto sem um adulto antes) comecei a ficar ainda mais aterrorizada. E se meu pai chegasse e eu não estivesse lá? Seria horrível. Eu seria uma péssima filha… Minhas mãos começaram a ficar úmidas, então guardei elas no bolso da calça para que Olhos Azuis não percebesse.

Chegamos no shopping por uma das entradas menos conhecidas e instantaneamente nos deparamos com um mar de pessoas vindo de todas as direções. Era a hora do almoço em um shopping do centro de Curitiba, e apesar de ser um centro comercial próximo ao Largo da Ordem, com restaurantes pitorescos e muros com cores vivas, as pessoas ainda preferiam se amontoar em lojas e filas, subindo e descendo pela escada centralizada que atravessava os andares em um ritmo que assemelhava-se a ratos correndo em rodas.

Paramos na frente de uma Casa do Pão de Queijo. Ele comprou um chá gelado e um sanduíche. Apesar do pão de queijo recheado ser meu favorito, escolhi um seco e sem graça para que eu não me lambuzasse na frente dele. Peguei o meu pedido enquanto esperávamos em pé o sanduíche dele ficar pronto.

Eu havia imaginado aquele momento um trilhão de vezes na minha cabeça. Mas nossas fantasias são sempre melhores que a realidade. E por um segundo eu fiquei chateada que tudo que eu queria poderia se realizar. Que eu poderia fazer algo a respeito em vez de deixar pro universo resolver tudo.

E agora? Ele vai me beijar aqui? De pé? Na frente da Casa do Pão de Queijo? Agora? Eu ainda tenho pão  de queijo na boca!

“Você…” ele começou a dizer algo mas sem querer o interrompi:

Minhas próximas palavras formaram a frase que eu mais me arrependo de dizer na minha vida. Depois delas, nunca mais tive uma oportunidade como aquela. Eventualmente ele se mudou para São Paulo e eu nunca mais o vi. Mas sem saber que o futuro tinha planos convergentes dos meus, sem saber que o universo não prioriza o primeiro amor de uma criança de doze anos, sem saber como aquilo afetaria tanto meu cérebro que eu começaria a mapear dez mil possibilidades antes de tomar decisões, mesmo quando eram praticamente irrelevantes, eu disse:

“Eu tenho que ir.”

E simplesmente assim, sem olhar pra trás, eu voltei apressada para a escola, onde encontrei meu pai quarenta minutos depois.

Sobre o/a autor/a

Rolar para cima