Verginia Grando desafia lugares-comuns ao escrever sobre “Amores ruins”

Poucas vezes uma autora mulher me fez ser uma leitora mulher

Você, principalmente se é fumante ou já foi, deve ter reparado em alguém que “não sabe fumar”. Há algo errado ali: o modo de segurar o cigarro, se o sujeito traga ou não, o modo de soltar a fumaça, o gestual. Há todo uma mise en scène em quem fuma inveteradamente. Eu, por exemplo, quando fumava, não puxava todo o conteúdo do cigarro de uma vez. Queria saboreá-lo até o final e tinha a mania de tragar o cigarro soltando-o nos lábios, deixando os dedos livres. Também apoiava o cotovelo direito na mão esquerda, o cigarro aceso à altura do olho.

Ler um livro sobre mulheres escrito por homens que não conhecem o universo da mulher é como observar alguém que não sabe fumar. O sujeito fuma, mas o mise en scène é equivocado. Ou a obra é simplesmente misógina (em vários graus de misoginia) ou é simplesmente um arremedo, algo pela superfície. Claro, você dirá que há fantásticas personagens mulheres construídas por homens. Ibsen? Machado? Mann? Flaubert? Tolstói? A lista dependerá do poder de sua biblioteca.

Cá por mim, penso que só fui entender melhor isso após ler Virginia Woolf. Sei que há um ponto cego nessa discussão – e ela não parece resolvida, pacificada ou com uma resposta fechada.

Verginia Grando

Verginia Grando escreve sobre amores ruins. Não encontrei em suas explicações um argumento que fosse direcionado a “amores ruins de mulheres”. No entanto, o ponto de vista a partir do qual essas histórias (de amores ruins) são contadas é muito feminino. Se você tem algum problema com o adjetivo – se ele assusta por algum motivo obscuro –, prefira “de mulher”. Se ele ainda assusta, leia o livro para tentar amadurecer. Um livro “de autora”, que fala do corpo da mulher sem medo, sem pruridos, e de amores.

O título é uma afronta, um desafio. Quem nunca conheceu um amor ruim talvez não tenha tido nenhum tipo de amor, seu ou de outrem, nem por observação. Há amores horríveis, das mais variadas formas, seja porque acaba, seja porque continua, seja porque é/era uma mentira graciosa, seja porque descobre outros contornos singulares, lá não muito interessantes.

“Amores ruins”

O amor é um dos temas mais antigos da literatura, e você deve conhecer ao menos de nome muitos. Todas as grandes literaturas e as pequenas lidaram com eles, desde os textos mais antigos sobre formação do universo: sequestros, mortes, guerras, tudo já foi fruto de situações que envolviam o amor.

Par a par com a literatura, o cinema descobriu que o amor era um filão, dos filmes mais idiotas às obras-primas, como “Ai no korîda” [“O império dos sentidos”]. E é justamente esse filme que eu quero lembrar para discutir “Amores ruins”, em particular o conto “Fogo Sagrado”. Este conto pode parecer um exagero (não darei spoilers), mas traduz perfeitamente algo que em 1976 Nagisa Oshima discutiu como poucos, o amor que invade o corpo, entra pelos poros, penetra os órgãos internos, torna-se visceral no sentido literal, até o paroxismo. Sada e Kizhizo deveriam substituir Romeu e Julieta no imaginário moderno.

A escritora Verginia Grando. (Foto: Divulgação)

“Amor sacro”

Em termos de escrita, o leitor verá um amadurecimento da escritora, e talvez o ápice do gênero escolhido por ela seja “Amor sacro”. Por uma felicidade casual, o conto começa na página 33. Ela começa o livro com uma citação de um mantra que diz que “tudo é ilusão” e creio eu que talvez “Amor sacro” mostre que tudo é verdade, e que as verdades podem ser mais profundas que as da ficção. Adorei o palíndromo involuntário, o espelhamento dos amantes, a finalização do que poderia ser um começo. O amor é contraditório. Ponto. E carrega segredos.

Há muitos aspectos que eu gostaria de ressaltar, mas eu vou indicar apenas dois: se você já conhece um pouco do trabalho de Grando como roteirista, esqueça. Não há nada de um roteiro aqui: é literatura adulta, madura, relevante, e não um bom roteiro. Outro ponto: ela foge de muitos dos lugares-comuns da atualidade – e isso é muito bom. Não aguento mais, por exemplo, ouvir a expressão “mundo líquido” usada sem a leitura atenta de Bauman. Foge, igualmente, de importantes discussões das teorias feministas, que ganharam uma versão Karnal nos cursos de empreendorismo da vida.

Antes que a autora me processe, eu falei acima que ela fugia do roteiro (algo que para um roteirista eu creio ser um ganho, uma vez que um desafio), mas ao longo do livro eu fiquei pensando que levaria às telas muitas das histórias ali contadas. “American Dream” eu até sei quem convidaria para o papel.

Poucas vezes uma autora mulher me fez ser uma leitora mulher.

A edição

A linda edição (com alguns probleminhas de revisão) é Arte & Letra. O design lindo é de Frede Tizzot, e você pode escolher a cor da capa (que tem duas versões). Peguei a amarela porque o amarelo é a cor do desespero (inventei isso agora, mas tenho cá meus motivos, e eles são muito bons).

Livro

“Amores ruins”, de Verginia Grando. Arte & Letra, 168 páginas, R$ 48. Contos.

Sobre o/a autor/a

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