A pandemia reforçou o que devia ser óbvio: a família está na base da educação

Tem muita coisa que pais e mães podem fazer para ajudar no estudo

A própria experiência de vida fez o sociólogo francês Bernard Lahire investigar os diferentes caminhos da aprendizagem escolar entre famílias populares de seu país. Na tentativa de compreender sucessos e fracassos, chegou a premissas basilares: de que a educação e o ambiente social são indissociáveis e de que hábitos familiares, por mais simples que sejam, são ferramentas de amparo e superação essenciais para todo e qualquer aluno.

As observações parecem indiscutíveis, mas, no fundo, questionam uma tradição secular ainda influenciadora de modelos didáticos-pedagógicos ao redor do mundo, incluindo o Brasil, e que beirou o colapso diante da maior pandemia dos últimos cem anos. Apesar de todas as dores e adversidades, a crise do coronavírus fragilizou paradigmas. Dentro e fora dos portões das escolas, mostrou que distinguir e separar papeis forçadamente não complementa, mas limita possibilidades.

“Nossa formação como sujeitos acontece em um contexto de segregação que diz que o conhecimento se adquire de forma mais orgânica e mais dinâmica no convívio familiar e de maneira mais sistematizada no espaço escolar. Mas isso não se sustenta mais porque tanto os processos de aquisição dos conhecimentos científicos e sistematizados quanto as relações de sociabilização, a construção da forma de ser e estar que a criança e jovem vai desenvolver no seu processo de escolarização, se dão de forma concomitante. Os processos são interligados”, afirma o psicólogo Pedro Braga Carneiro, coordenador da Comissão de Psicologia Escolar e da Educação do Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR).

Com as escolas fechadas, a ficha caiu. Maratonas de aulas on-lines, atendimentos virtuais e conteúdos via televisão empurraram a sala de aula para dentro das casas. O processo obrigou mães, pais e responsáveis a assumirem a mediação entre os professores e seus filhos –  ao mesmo tempo em que aprofundou os desafios da educação diante da desigualdade.

Em maio, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) mostrou que 4,8 milhões de crianças e adolescentes do país, de 9 a 17 anos, não têm acesso de casa à internet, instrumento hoje tão importante quanto livros e cadernos no processo de aprendizagem. O número equivale a 17% de todos os brasileiros nessa faixa etária.

A realidade social pesa e não deve ser ignorada na discussão sobre integração dos conteúdos entre escola e família, observa Carneiro. “São duas coisas importantes. Uma delas é a escola disponibilizar de pessoal, de equipe para atender e dar suporte a essas famílias, e dar espaço e tempo aos professores para fazerem o planejamento das atividades, que é mais complexo. Outro cenário é olhar para a realidade das famílias”, observa.

Mas o estabelecimento de alguns pequenos hábitos que não demandam, diretamente, uma rede de estrutura ignorada por políticas públicas pode favorecer a vida escolar de crianças e adolescentes. Para a pedagoga Andréa Cordeiro, professora do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutora em Educação, o simples fato e um adulto se mostrar em interessado na rotina escolar já pode ser um diferencial.

É nessa linha que o sociólogo Bernard Lahire defende a participação de mães e pais na vida escolar para além dos compromissos pontuais. Manter o hábito da leitura, assistir e comentar juntos sobre um programa de televisão e facilitar o ambiente de estudos, por exemplo, são tarefas mais abertas e possíveis e que estimulam a integração da família na vida do estudante.

“Uma família que, apesar de não ter computador para a criança acessar as aulas, mas que vai se organizar no sentido de buscar as atividades ou emprestar o celular para a criança em um determinado horário, verificar se ela está conseguindo acessar, ouvir a professora, isso já é um diferencial. Uma família que vai estipular um tempo na casa para respeitar quem está estudando também. Essa organização do clima familiar é importante porque mostra à criança e ao jovem que o que eles estão fazendo não é vazio, tem uma importância dentro da ética daquela família e, com isso, a família também ajuda a perceber a importância da escola para além da empregabilidade, do discurso do trabalho, mas de acordo com um discurso mais convincente da ampliação de possibilidades”, pontua a professora.

A mudança na prática

Foi justamente a reorganização familiar que aprofundou a rotina de Michelle Bittencourt Galvão, 42, na vida escolar dos filhos – Lívia, 14, e Miguel, 5, alunos do Colégio Medianeira, unidade de Curitiba da Rede Jesuíta de Educação. Desde que a instituição suspendeu as atividades presenciais, ainda em março, os dois foram adaptados a uma nova, mas não menos importante, dinâmica de estudos em casa.

A participação e as atividades são cobradas de perto pelos pais, que admitem nunca terem se envolvido tanto do dia a dia escolar. Nesse meio tempo, Galvão não apenas ouviu de longe, mas chegou a assistir aulas junto aos filhos. Reviu conceitos e passou a defender a participação mais ativa da família, algo que pretende manter daqui para frente.

“Eu escutei muito que esse foi um ano perdido e quando parei para fazer uma reflexão me dei conta que não, não foi um ano perdido. A gente como pais não participava muito da vida escolar dos filhos, ia na escola quando tinha uma reunião, quando chamavam. Mas quando eles vieram para dentro da nossa casa, e a gente precisou estar junto, começamos a ver muito mais de perto o trabalho da escola. Me surpreendi positivamente porque, na verdade, comecei a compreender o trabalho dos professores”.

Com o filho de 5 anos nos primeiros passos da alfabetização, a chegada da pandemia fez a mãe temer. 2020 foi o primeiro ano de Miguel no Colégio Medianeira, e o fechamento das escolas a deixou em dúvida sobre o que esperar do desempenho da criança. Mas os novos hábitos da casa, aliados a uma dedicação intensa dos professores do outro lado da tela, deram resultado. Mesmo com todos os desafios, Miguel já reconhece as letras e está um passo de engatar a leitura, a maior recompensa para a nova organização da família.

“Como pai e mãe nós achamos que o certo seria manter uma organização e da mesma forma como se estivesse na escola. A formação do hábito é de responsabilidade da família e também depende de valores, como o respeito que tem que ter pelo professor que está do outro lado. Nem sei se a gente está fazendo a coisa certa, mas me parece ser o mais sensato”, diz a mãe. “Eu não costumava ser muito ativa na escola porque estava sempre tudo muito bem, sempre dando tudo certo. Mas agora entendi que tem um motivo de dar certo e passei a dar mais valor para o esforço da escola e dos professores”.

Professor ainda é professor

Apesar de a integralidade como uma dinâmica de aprendizagem contínua ter ganhado contornos mais evidentes com crianças e jovens em casa, mães e pais não precisam, e nem devem, assumir-se como professores. Aos docentes é quem cabe dominar os conteúdos, cuja aplicação depende de didáticas e metodologias específicas. Mesmo assim, o papel da família não deixa de ser importante.

“Agora se misturou um pouco, as famílias estão tendo que participar de forma tão mais efetiva que, em alguns momentos, se confunde o que é atribuição da professora e o que é atribuição das mães e dos pais. Mas cada um ainda tem a sua função mais específica. O que a gente tem que deixar mais claro é que a família não é um substitutivo da professora, ela não precisa se cobrar por isso, mas que é fundamental estar junto”, acrescenta a pedagoga.  

Para que o processo funcione, colocam os especialistas, o posicionamento das escolas também é indispensável. Segundo Carneiro, questionar os currículos que agora se mostram descontextualizados quanto ao cotidiano das famílias é um passo; outro são as próprias instituições, independente de serem públicas ou privadas, darem ferramentas para que mães e pais consigam agir mais do que apenas por interesse.

“O processo de aprendizagem passa necessariamente pela mediação da família, ainda mais nesse momento. Por isso, a escola precisa dedicar esforços não apenas aos processos pedagógicos com as crianças, mas aos processos de orientação, de acolhimento e diálogo mais sistemático com as famílias”, acrescenta o psicólogo.

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