Camila e as irmãs travestis

Tia Encarna, travesti que tem quase duzentos anos, teve um companheiro Homem Sem Cabeça e resgatou um bebê do lixo, que leva para a pensão dela e batiza de Brilho dos Olhos

O texto nos arrebata com a força de um furacão. Violência e irmandade se misturam nessa obra escrita por uma travesti. Sim, a argentina Camila Sosa Villada é travesti. E “O Parque das Irmãs Magníficas” é essencial para se entender o mundo delas. 

(“Las Malas” foi traduzido lindamente por Joca Reiners Terron. A começar pelo título). 

Batizada na cidadezinha de La Falda como Cristian Omar, Camila, que também é atriz, foi para Córdoba com 18 anos para estudar jornalismo. Escrevia desde criança – reprimida pelo pai, que queria um filho homem. Camila escrevia na primeira pessoa, e já como mulher. Trocava de roupa escondida, se maquiava escondida. Em Córdoba, conheceu as travestis no Parque Sarmiento, que a acolheram. A irmandade.

Tia Encarna, travesti que tem quase duzentos anos, teve um companheiro Homem Sem Cabeça e resgatou um bebê do lixo, que leva para a pensão dela e batiza de Brilho dos Olhos. Na pensão, vivem várias travestis. Uma delas, muda, que cuida do bebê.

“A cada manhã, o Homem Sem Cabeça rezava para seus deuses antes de o sol nascer (…). Então ia despertar Tia Encarna, como se na verdade não a trouxesse do sonho, e sim de um feitiço de conto de fadas. (…). “Como você está linda, meu amor” (…). E isso era suficiente para o horror do mundo arrefecer. Um sortilégio breve com o qual sobreviver dia a dia às nossas mortes, à morte de nossas irmãs, às desgraças alheias, sempre tão nossas

Homens como ele nos ensinavam línguas estrangeiras, carícias nunca vistas, que nos faziam sentir a pele como um guardanapo de papel muito fino, faziam-nos sentir transparentes, como se, de repente, Deus pudesse nos olhar por dentro”.

Resenhas desse livro de 2019 tentam aproximar o texto de Camila ao realismo mágico. Ela, em entrevistas, diz que escreve ficção.

“O medo tingia tudo em minha casa (…). É possivel que aí seja gestado o pranto das travestis: no terror mútuo entre o pai e sua cria travesti. As feridas se abrem ao mundo, e as travestis choramos.”

Uma vida dupla. Realmente: são duas vidas. De dia, elas se escondem na pensão, dormem até tarde, se depilam, fazem a barba. De noite, maquiadas e enfeitadas, de salto alto e apliques no cabelo, saem para o Parque. Bebem, usam drogas. A morte ronda toda noite. As pessoas desviam delas. Os homens as maltratam. Os clientes batem, espancam.

A argamassa de maquiagem (…) uma máscara de barro ardente que tapava todos os poros, para que a alma não escapasse por ali toda vez que recebíamos uma agressão“.

Como repórter, há mais de vinte anos, entrevistei travestis. Não mudou nada. 

Ler Camila Sosa Villada é necessário. 

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