Pequenos grandes gestos: o Holocausto e as resistências LGBTQIA+

Lembrar a Shoá nos dias de hoje é uma ferramenta importantíssima para o combate à intolerância

Quando nos referimos a períodos históricos violentos, tendemos a retraçá-los como um apanhado de grandes e notáveis acontecimentos. É como se as escalas sempre fossem as dos livros de História e envolvessem multidões, institucionalidades, Estados e acordos protocolares. Parecemos nos esquecer de uma instância muito mais expressiva que a dos eventos oficiais: as circunstâncias mínimas, os pequenos incidentes, os fatos não pertencentes ao alcance público. A vida, em suas singularidades e especificidades.

Como sabemos, o Holocausto não se iniciou com os campos de concentração e extermínio, mas com atitudes e decisões, entre as quais a discriminação racial, a corrosão da democracia, o desrespeito à pluralidade, e mecanismos burocráticos e impessoais de classificação e exclusão. Ações que se dão nas relações diárias, corpo a corpo. Tais processos não determinaram a ocorrência do genocídio, mas criaram as condições que o possibilitaram. Analisar o Holocausto nos revela como homens e mulheres comuns puderam se transformar em genocidas, assim como também nos revela como homens e mulheres comuns lutaram bravamente contra a brutalidade e a crueldade.

Os fatores que possibilitaram que a Shoá ocorresse não são, no entanto, exclusivos daquela época e lugar. Se o Holocausto foi uma combinação singular de elementos, podemos dizer que nenhuma sociedade ou indivíduo está imune a estes mesmos fatores. Agora mesmo, aqui, estamos cercados por violências muito semelhantes, em diferentes graus e circunstâncias. Não que a permanência desses fenômenos na contemporaneidade signifique que estejamos diante de um novo Holocausto – mas se trata, exatamente, do fato de que o Holocausto foi possibilitado por processos como estes.

As resistências às perseguições e aos cerceamentos de liberdades sempre se deram de muitos modos – porque são variadas as maneiras com que as pessoas fazem a vida se tornar possível. A maior parte dos movimentos de recusa, de confrontação e de persistência não é narrada como parte da História oficial. Porque, na verdade, são pessoas encontrando modos de seguir adiante, fazendo reação a políticas de extermínio, autoritarismo e opressões. Há quem tenha pegado em armas, há quem tenha escrito poemas. Há quem tenha cuidado dos seus e das suas. Há quem tenha simplesmente amado quem gostaria de amar. E não é possível dizer que alguma dessas atitudes seja maior ou mais efetiva do que outra na luta contra o ódio.

Distante dos feitos heroicos, é na vida ordinária, nos deslocamentos aparentemente banais, naquilo que se dá sem contornos formais, que existências se transformam. É nestes momentos em que a coragem se confunde com a própria vida: ações vitais, muito simples para alguns e algumas, um grande risco para tantas e tantos outros. Como é o caso da vida e do amor de pessoas LGBTQIA+, ontem e hoje.

Lembrar a Shoá nos dias de hoje é uma ferramenta importantíssima para o combate à intolerância – seja racial, política, religiosa, de gênero ou orientação sexual – a defesa da democracia, dos direitos humanos e da pluralidade, por isso gostaríamos de relembrar a vida de algumas pessoas LGBTQIA+ vítimas do Holocausto. Porque embora já muito avançados em discussões e políticas públicas, ainda convivemos com o mesmo cerne reacionário e intolerante para com as existências não normativas e dissidentes sexuais e de gênero. Reunimos neste texto quatro histórias que nos inspiram de pessoas LGBTQIA+ vítimas da violência nazista durante Holocausto. Em seus pequenos grandes gestos, estas pessoas nos ensinam muito sobre dignidade, amor e resistência.

Willem Arondeus nasceu em Naarden, em 1894. Foi um artista e autor holandês que se juntou ao movimento antinazista na Holanda durante a Segunda Guerra Mundial. Ele nunca escondeu a sua homossexualidade e tornou-se membro ativo da resistência holandesa, incentivando outras pessoas a resistir à invasão alemã. Desde o início, não acreditou na propaganda nazista que coagia o povo judeu a se registrar “para segurança própria”, temendo que existissem razões escusas para as autoridades alemãs quererem saber quem era judeu. Por isso, um grupo de resistência, ao qual Arondeus se juntou, forjou documentos para que pessoas judias pudessem esconder sua identidade. No entanto, o regime percebeu que, se comparasse os documentos falsos aos registos públicos da cidade de Amsterdã, poderia determinar quem detinha documentos irregulares. Em 1943, Arondeus liderou uma invasão que resultou na destruição do Edifício de Registro de Cidadão de Amsterdã, o principal meio dos nazistas para rastrear os movimentos das pessoas que procuravam controlar. Isso inspirou ataques bem-sucedidos semelhantes em todo o país. Pouco tempo depois, Arondeus e outros membros LGBTQIA+ que integravam o grupo foram denunciados e condenados à morte por um pelotão de fuzilamento em 1º de julho daquele mesmo ano – Sjoerd Bakker e Jouhan Brouwer também foram mortos nesta ocasião. Antes de ser executado, ele pediu a seu advogado que sua homossexualidade fosse abertamente divulgada, para que “as pessoas soubessem que gays não são covardes! Após a guerra, a família de Arondeus recebeu uma medalha de honra do governo holandês por sua participação na resistência. Sua história de coragem e resistência, o modo como viveu e lutou, fez dele uma personalidade importante da história LGBTQIA+.

Frieda Belinfante nasceu em Amsterdã, na Holanda, em 10 de maio de 1904. Começou a tocar violoncelo aos dez anos e estreou profissionalmente aos 17. Em 1937, foi convidada para dirigir o Concertgebouw em Amsterdã, tornando-se a primeira mulher na Europa a reger uma orquestra profissional. Continuou a ter sucesso em sua carreira, aparecendo em rádios holandesas e regendo por toda a Europa, até seu trabalho ser interrompido com a invasão da Alemanha nazista na Holanda. Lésbica e filha de pai judeu, sua vida mudaria drasticamente com a ocupação no país. Em 1943, em vez de seguir sua promissora carreira, Frieda entrou para a resistência e passou a auxiliar vítimas da perseguição. Encontrou esconderijos, falsificou documentos e ajudou a planejar um bombardeio para destruir os registros populacionais do Escritório de Registros Públicos de Amsterdã. Após o ataque, diversos de seus colegas foram executados e, para evitar ser descoberta, começou a usar roupas consideradas masculinas. Frieda escapou para a Suíça e só retornou à Holanda após a guerra. Em 1947, imigrou para os Estados Unidos, onde retomou sua carreira musical e fundou a Orquestra Filarmônica de Orange County, com grande aclamação. Violoncelista, maestra e integrante da resistência holandesa, faleceu em 26 de abril de 1995, em Santa Fé, no Novo México.

Erika Julia Hedwig Mann nasceu na cidade alemã de Muni, em 9 de novembro de 1905. Foi uma produtora de teatro, dramaturga, jornalista, e atriz alemã. Era filha do escritor Thomas Mann e de Kathia Mann. Conhecida pelo seu cabaré humorístico antifascista e por sua companhia de teatro, “die Pfeffermühle”, cujas peças ridicularizavam abertamente os nazistas, Erika deixou a Alemanha em 1933, pouco depois da subida ao poder de Adolf Hitler. Para sua surpresa, havia escapado da primeira onda de detenções do início daquele ano. Decidiu não arriscar muito mais tempo e fugiu para Zurique, onde seus pais já se encontravam. Em 1935, viveu na Inglaterra, onde casou-se por conveniência com o escritor W. H. Auden, para poder permanecer no país. Ela era lésbica e ele homossexual. A amizade dos dois artistas, a subversão da instituição casamento e as questões políticas que envolveram tal relação, fizeram deste episódio biográfico uma inspiração para as narrativas LGBTQIA+ posteriores. Terminada a guerra, Erika esteve presente nos julgamentos de Nuremberg, onde os crimes de guerra foram analisados e uma enorme quantidade de documentação e testemunhos foram reunidos. Foi a única mulher a cobrir os julgamentos de Nuremberg. Erika Mann faleceu em Zurique, aos 63 anos, em 27 de agosto de 1969.

Albrecht Becker nasceu em 1906, na cidade alemã de Thale. Quando criança, não se interessava muito por esportes, preferindo brincar de boneca, fazer bordado e tricô. Sendo assim, seu pai decidiu direcionar os interesses do filho para a indústria têxtil. Aos 18 anos, mudou-se para Würzburg, onde trabalhou organizando vitrines em uma loja de departamentos. Seus supervisores, impressionados com o talento, o enviaram para uma escola de design em Munique. Becker fez muitas viagens e comprou sua primeira câmera, marcando o início de uma longa carreira na fotografia. Em 1935, foi considerado crime “promover amizades” entre homens em que pudesse haver um “elemento homossexual”. É exatamente neste ano que, vivendo em Würzburg com seu companheiro, Becker foi levado a julgamento. Ao não contestar as acusações de “homossexualidade”, foi condenado a três anos de prisão em Nuremberg, para onde foi levado. No pós-guerra, tornou-se um artista múltiplo: foi ator, fotógrafo, cenógrafo, desenhista, colaborou com inúmeros projetos em cinema, teatro e ópera. Albrecht Becker faleceu em 22 de abril de 2002, em Hamburgo, Alemanha, aos 95 anos. Sua coleção particular de fotos está no Museu Schwules, em Berlim.

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