O nazismo não é uma “utopia que deu errado”

O nazismo não parte da crença em um futuro melhor, mas de um projeto de extermínio ideologicamente motivado

Recentemente, tive a experiência de me deparar, em uma rede social, com uma teoria conhecida e frequentemente difundida em vários canais: o nazismo teria sido uma “utopia que deu errado”. Os nazistas teriam sido demagogos ao dizerem querer melhorar o mundo, mas que acabaram por só trazer caos e destruição.

De acordo com esse argumento equivocado, uma chave para a sucesso popular do nazismo teria sido uma hipotética promessa (ou mesmo a vontade) de melhorar a vida do povo alemão e construir um mundo ideal. O Holocausto e outros crimes nazistas seriam, portanto, resultado de acharem que, em nome do ideal, qualquer coisa seria aceitável.

Essa tese, contudo, é um desserviço à compreensão histórica. Vejamos os erros dessa teoria e por quê ela carrega consequências perigosas.

O que é utopia?

O termo “utopia” (do grego, um não-lugar) surgiu no livro “Utopia”, de 1516, do escritor inglês Thomas More. Ele critica a sociedade da época em contraposição a “Utopia”, uma ilha fictícia com uma sociedade, aos olhos do autor, perfeita, justa e harmoniosa. Nos séculos seguintes surgiram diversas utopias (e tantas outras ideias foram caracterizadas como utópicas) na literatura, nas artes, na política.
O conceito é disputado e, muitas vezes, utopia é definida de forma excessivamente ampla, como um sinônimo de ideal revolucionário ou de quaisquer ideias de futuros radicalmente diferentes do presente. Nessa compreensão, que de tão abrangente se confunde com outros conceitos, o nazismo poderia ser utópico. Creio, contudo, ser necessária uma definição mais específica.

A descrição da utopia varia de acordo com as convicções de seus autores, mas é possível delinear algumas características gerais.

1 – As utopias surgem da crítica a uma situação do presente;
2 – As utopias desejam, para toda a sociedade, um futuro radicalmente diferente desse presente criticado;
3 – As utopias vislumbram de forma concreta (não só com princípios) esse futuro;
4 – O futuro utópico segue o princípio de bem comum e nele há uma organização ideal e perfeita da sociedade e, no limite, da humanidade;
5 – As utopias são realizáveis somente em um futuro (ou em um espaço) distante ou há mesmo consciência de sua impossibilidade.

Há quem use o termo com um tom pejorativo para caracterizar idealistas ingênuos, bem-intencionados, mas que sonham com futuros impossíveis. Um olhar mais cauteloso teme que as utopias, em nome de objetivos nobres, legitimem meios indesejáveis e violentos. Há ainda outros, como o escritor Eduardo Galeano, que, mesmo reconhecendo que as utopias provavelmente nunca se realizarão por completo, enxergam na busca por alcançá-las um motor para construir um mundo melhor. Essas três avaliações não discordam, contudo, sobre as características gerais elencadas.

O nazismo foi uma utopia?

O nazismo se encaixa nessa definição de utopia? O partido nazista via a Alemanha da República de Weimar (1918-1933) como decadente e contaminada por agentes que conspiravam contra ela (judeus, comunistas, os países vencedores da Primeira Guerra Mundial, etc). E a saída não se daria por correções pontuais e graduais, mas rompendo com tudo que a República de Weimar representava para os nazistas.

Por outro lado, ao mesmo tempo em que o nazismo vislumbrava um futuro distante (o Reich de mil anos), seus olhos também se voltavam ao passado. O futuro idealizado pelos nazistas não era uma grande novidade, como geralmente nas utopias, mas a realização do que acreditavam ser uma essência atemporal da raça ariana. Essa confusa convergência de um olhar nostálgico para o passado e vistas a um futuro distante foi chamada pelo historiador Jeffrey Herf de “modernismo reacionário”.
Mas a maior diferença entre nazismo e utopias reside no fato de que os nazistas não pretendiam criar um mundo perfeito e ideal, muito menos harmonioso e pacífico. O que eles desejavam era a pureza e a dominação de um grupo (o seu) sobre os outros. A guerra, para eles, não era um mal necessário para se alcançar o mundo ideal, mas um estado permanente por meio do qual os mais fortes se afirmavam e a raça ariana expressava sua essência.

O Reich de mil anos não seria um período pacífico e ordenado. Como aponta o historiador Robert Paxton, o fascismo requer uma permanente radicalização. Por isso ele não existe fora do estado de conflito (ou de preparação para). Philip Dick, na ficção “O Homem do Castelo Alto” (1962), no qual imagina um cenário no qual o Eixo teria vencido a Segunda Guerra Mundial, além de fazer uma crítica a Guerra Fria, é muito preciso em supor que a Alemanha nazista, após vencer a guerra, iniciaria novos projetos de imperialismo e dominação, criando novos inimigos para se manter em um permanente estado de conflito.

O futuro idealizado pelos nazistas é, aos seus olhos, obviamente bom e melhor do que o presente, mas não seria possível que fosse perfeito e ideal. Para eles, haveria a necessidade de sempre instigar novos conflitos para afirmar sua dominação sobre os outros e manter energizada a essência guerreira ariana.

O nazismo “deu errado”?

Mais simples é a resposta à segunda parte da pergunta. O nazismo não era um projeto de bem comum que degenerou em catástrofe. Foi um projeto de catástrofe que, infelizmente, foi bastante eficiente durante um período de tempo. O objetivo nazista não incluía necessariamente melhorar a vida de seu povo ou sua raça, mas estabelecer a dominação, como grupo, deles sobre outros e a eliminação daqueles que consideravam perigosos ou indesejáveis.

Em resumo, os nazistas não prometeram o bem comum e, em nome deste, perpetraram o Holocausto. O nazismo objetivava eliminar os judeus da Alemanha e acabar com a influência que pudessem ter onde quer que se encontrassem. Não é, portanto, uma utopia bem-intencionada que deu errado ou se desviou de seus propósitos, mas um projeto genocida. O nazismo não deu errado. Ele é errado.

Os perigos

A ideia de que o nazismo foi uma “utopia que deu errado” não tem problemas somente factuais. Há ao menos duas consequências políticas muito perigosas.

A primeira é que, partindo da definição muito abrangente de utopia na qual o nazismo poderia se encaixar, seria possível associar com nazismo qualquer projeto capaz de fazer uma crítica radical do presente e imaginar um futuro diferente distante. Se o Holocausto teria sido um resultado da crença em um futuro radicalmente diferente, então, para prevenir-se de novas tragédias similares, seria preciso conformar-se à realidade existente, demandar modificações somente pequenas, graduais e cautelosas, jamais idealizar futuros muito distintos do presente.

Só que o nazismo não parte da crença em um futuro melhor, mas de um projeto de extermínio ideologicamente motivado. Por sua vez, inúmeros avanços sociais, científicos e políticos só foram possíveis pela capacidade de imaginar futuros distantes a partir da crítica radical do presente.

A segunda consequência perigosa é de reabilitação do próprio nazismo. Afinal, se o nazismo seria um projeto de sociedade ideal que deu errado, não seria possível retomar esse projeto corrigindo os seus erros? Em uma das cenas finais do filme “A Onda” (2008), um dos jovens frustrados com o fim de seu experimento semifascista argumenta que seria possível corrigir os erros. Ao que o professor responde: “Não se pode corrigir essas coisas”. Não é possível corrigir os erros de um projeto que tinha por objetivo precisamente esses “erros”.

Talvez a tese de que o nazismo é uma “utopia que deu errado” atenda a uma vontade de crer que as milhões de pessoas que apoiaram e colaboraram com o regime nazista eram bem-intencionadas, mas ignoraram que os fins não justificam os meios. No entanto, a realidade é mais devastadora: o nazismo obteve poder e apoio não apesar de ser autoritário e perseguir outras pessoas, mas, embora não exclusivamente, também por isso. O problema não estava somente nos meios, mas nos fins.

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