Klaus Barbie: A vida do “carniceiro de Lyon” em La Paz

Condenado a prisão perpétua na França em 1987, o ex-chefe da Gestapo em Lyon morreu de câncer em 1991. No entanto, durante décadas, viveu livremente e influenciou as decisões na cidade-sede do governo boliviano

De La Paz, Salus Loch, jornalista e assessor de imprensa do Museu do Holocausto de Curitiba

Klaus Barbie, conhecido como “o carniceiro de Lyon”, foi um infame criminoso nazista que encontrou refúgio na Bolívia após o término da Segunda Guerra Mundial. Sua vida e atividades no país sul-americano desempenharam um papel de relevo em sua trajetória sombria. Neste artigo, vamos explorar os crimes cometidos por ele, bem como a atuação na condição de informante tanto dos Estados Unidos quanto da Alemanha no período pós-guerra. Além disso, traremos informações de como Barbie conseguiu viver impunemente nas alturas, mais especificamente a 3.648 metros de altitude em La Paz, onde se tornou uma figura proeminente na política, nos negócios e no crime.

Trajetória

Nikolaus “Klaus” Barbie nasceu em Bad Godesberg, perto de Bonn, Alemanha, em 25 de outubro de 1913. Aos 20 anos, perdeu o pai, o que o impediu de frequentar a universidade para estudar teologia. Dois anos depois, começou a trabalhar com o Serviço de Segurança (Sicherheitsdienst, ou SD), uma rede de inteligência do regime nazista, onde se especializou em interrogatórios brutais; mudança significativa para um aspirante a teólogo, convenhamos.

Durante a Segunda Guerra Mundial, foi designado para Amsterdã, na Holanda, atuando como agente de inteligência. Em 1942, foi transferido à França, tornando-se peça-chave no combate à resistência francesa. Devido à crueldade de suas ações e o modo como interrogava as vítimas – fazendo uso da tortura, recebeu a alcunha de “o carniceiro de Lyon”.

Acredita-se que Barbie tenha sido responsável pela execução ou assassinato de mais de 4 mil pessoas, além da deportação de 7,5 mil judeus, a maioria dos quais pereceu em Auschwitz.

O herói da resistência francesa, Jean Moulin, foi uma das principais lideranças sob o jugo de Barbie. Submetido a torturas diárias durante três semanas consecutivas, Moulin não traiu seus companheiros, recusando-se a divulgar qualquer informação. Ele acabou morrendo em decorrência dos efeitos do cárcere, em julho de 1943. Antes, em fevereiro de 1943, Barbie havia sido responsável pela liquidação do Comitê de Lyon da União Geral dos Judeus da França e a subsequente deportação de seus membros. O carniceiro também torturou pessoalmente centenas de homens, mulheres e até crianças no segundo andar do Hotel Terminus, quartel-general da Gestapo em Lyon.

O Massacre de Izieu

Outro dos crimes infames de Barbie foi a deportação de 44 crianças e sete adultos de um lar infantil em Izieu, no sul da França. Os cuidadores do local, Sabine e Miron Zlatin, protegiam os jovens em uma casa de fazenda remota, mantendo suas identidades judaicas em segredo, enquanto eram oficialmente registrados como refugiados. Em 6 de abril de 1944, Barbie recebeu informações sobre o lar e liderou um ataque ao local. No dia seguinte, todos foram levados de bonde até a estação Lyon-Perrache e transportados por trem civil para o campo de concentração de Drancy, na França. A partir daí, eles foram deportados em seis comboios distintos, entre abril e junho de 1944.

Em 13 de abril de 1944, 34 das crianças de Izieu e quatro dos cuidadores foram transportados de Drancy para Auschwitz-Birkenau no trem de número 71. Apenas a cuidadora Léa Feldblum sobreviveu (mais tarde, ela participaria do julgamento de Barbie). Léa foi marcada com o número 78.620, servindo de “cobaia” para experimentos dos médicos nazistas – resistindo até a libertação do campo, em janeiro de 1945.

Outras oito crianças e três cuidadores de Izieu foram deportados pelos comboios 72, em 29 de abril; 74, em 20 de maio; 75, em 30 de maio; e 76, em 30 de junho de 1944. Todos foram mortos em Birkenau assim que chegaram. Miron Zlatin e dois adolescentes, Theo Reis e Arnold Hirsch, foram deportados em 15 de maio de 1944 para a Estônia no trem 73. Eles foram baleados pela SS (Schutzstaffel/Tropa de Proteção), no castelo de Tallinn.

Conforme o judeu francês de origem romena, Serge Klarsfeld – que, ao lado da esposa Beate, caçou Barbie e outros nazistas no pós-guerra –, Klaus Barbie foi soberano em suas decisões na França. “Ele era o chefe da Gestapo em Lyon, um personagem aterrorizante que não teve de pedir permissão a ninguém de cima para as maldades que cometeu. Ele, e só ele, deu a ordem de deter e deportar as crianças da residência de Izieu. Era culpado, por isso o encurralamos e o perseguimos até ele ser julgado. A culpabilidade de Barbie é indiscutível”, afirmou Serge, em entrevista ao jornal El País, publicada em 29 de novembro de 2019.

Barbie deixou Lyon em agosto de 1944, um mês antes da cidade ser libertada pelo exército dos EUA. Retornando à Alemanha, participou dos combates até o final da guerra.

O governo francês apresentou acusações contra Barbie, que constava em listas de criminosos de guerra procurados pela Comissão Nacional de Crimes de Guerra das Nações Unidas e pelo Registro Central de Criminosos de Guerra e Suspeitos de Segurança.

Informante

Embora tenha sido preso pelo menos duas vezes logo após o fim da guerra, Barbie conseguiu fugir em ambas as ocasiões, evitando a identificação. Em 1946, estava vivendo sob um nome falso em Marburg, Alemanha, e trabalhava com um grupo organizado de nazistas para formar um novo governo alemão. Em 1947, um oficial do Corpo de Contra-Inteligência do Exército dos EUA (CIC) localizou Barbie, mas, em vez de prendê-lo, recrutou-o como informante, conforme revela o Museu do Holocausto dos EUA, em sua página oficial. Durante cerca de quatro anos, ele teria fornecido informações às autoridades americanas sobre a inteligência francesa e as atividades soviéticas e anticomunistas na zona americana da Alemanha ocupada.

Quando o governo francês solicitou a extradição de Barbie às autoridades dos EUA em 1949, já era de conhecimento público que ele vivia livremente na zona americana sob identidade falsa. Com as exigências francesas de extradição aumentando, o CIC decidiu que era arriscado continuar usando Barbie como informante. No entanto, o órgão não estava disposto a entregá-lo aos franceses, temendo que soubesse demais a respeito das operações de inteligência estadunidenses.

Chegada à América do Sul

Em 1951, os norte-americanos ajudaram Barbie a escapar para a América do Sul com sua família, por meio de uma ratline (linha de ratos), esquema que facilitava a fuga de nazistas e outros membros do Eixo no pós-guerra (mais tarde, em uma reviravolta incomum, Washington emitiu um pedido formal de desculpas a Paris como resultado de tal ação).

Ao esquivar-se da captura, Barbie encontrou abrigo na Bolívia. Sua primeira parada nas Américas, porém, foi a Argentina – onde ficou por uma semana e meia –, depois de desembarcar do navio Corrientes, que havia deixado o porto de Genova, na Itália.

Sob o nome de Klaus Altmann Hansen, envolveu-se com a política e fez negócios lucrativos em territórios andinos.

Ao visitar alguns cafés da avenida Prado, no centro de La Paz – onde ele costumava ficar até tarde “batendo papo” com amigos – ou circulando pelas ruas repletas de altos e baixos da acidentada topografia, é possível encontrar lembranças da passagem do nazista, que morava na Avenida Arce, no coração da cidade.

Moradores locais, especialmente os mais velhos, contam diferentes episódios envolvendo o ex-chefe da Gestapo – entre os quais relações com traficantes e uma equipe própria de assassinos, alguns da Itália e outros da Argentina, chamados de “Noivos da Morte”.

O professor universitário boliviano, jornalista e escritor, Robert Brockmann, é outro que lembra do carrasco e lamenta: “hoje, a Bolívia, em relação à Shoá e à Segunda Guerra, é mais conhecida por Barbie do que por ser o país de figuras notáveis, que ajudaram a salvar os judeus do Holocausto, como o empresário Maurício Hochschild, que viabilizou o resgate de mais de 20 mil judeus europeus entre o fim dos anos 1938 e a década de 1940”.

Um homem de meia idade, com fala estudada, que me viu questionando e pesquisando sobre Barbie nos arquivos da Biblioteca Nacional da Bolívia, localizada junto ao prédio da vice-presidência do país, disse que seu tio, já falecido, “fazia negócios” com Altmann, e que o alemão, um “baixote encorpado”, era “muito rico”, tento atuado nos ramos de serraria e na indústria marítima (durante a ditadura militar do general René Barrientos, Barbie foi nomeado gerente geral da Bolivian Transmaritime Company, criada em 1967, com capital público e privado). “A morte de Barrientos, num acidente de helicóptero em 1969, complicou a vida de Barbie – que acabou indo morar no Peru por um tempo, voltando à Bolívia apenas em meados de 1971”, segredou ele.

“Homem mau”

Independente da origem, ou memória/sentimento compartilhado, todos aqueles que conversaram com a reportagem foram unânimes em afirmar: Klaus Barbie/Altmann era um “homem mau”.

Tal traço de personalidade não impediu que o nazista viesse a se tornar figura atuante junto ao alto escalão da política interna, primeiro com Barrientos, e, depois, prestando seus serviços de “especialista em repressão” para o ditador militar de direita, Hugo Banzer Suárez, que o reabilitou do período de ostracismo no vizinho Peru.

Durante esse tempo, para os “amigos locais” e os “amigos externos”, Barbie manteve vivo seu “anticomunismo convicto”, extremamente valioso para o Tio Sam e a própria Alemanha. Também integrou o Clube Alemão de La Paz, ambiente útil para contatos – e uma porta escancarada para negócios com seus conterrâneos, na Europa.

Saiba mais

Ainda em 1957, devido ao “status” adquirido, Barbie obteve a cidadania boliviana e um passaporte diplomático, o que lhe concedeu a liberdade de viajar sem restrições para a Europa e os EUA. Em 1966, voltou à França, quando visitou o túmulo de Jean Moullin, onde teria deixado flores, por considerá-lo seu “melhor inimigo”, conforme entrevista concedida em 1972.

Mais tarde, seria elevado à condição de tenente-coronel do Exército da Bolívia, situação que o permitiu continuar vivendo tranquilamente no país, sem ser perturbado pelas acusações dos crimes cometidos durante a guerra.

Codinome Águia

Entre os oportunos alinhamentos de Barbie enquanto residente em La Paz, vale destacar, ainda, o trabalho como informante da Alemanha, entre maio de 1966 e dezembro de 1968. O fato consta do livro “Deckname Adler (Codinome Águia)”, de Peter Hammerschmidt. Segundo o autor, Barbie foi informante do BND alemão (Bundesnachrichtendienst), Serviço Federal de Inteligência, com o nome secreto Adler (Águia) e identificação V-43118, em um contrato de espionagem não revelado às forças de informação e segurança bolivianas.

Hammerschmidt descobriu que nos pagamentos feitos a espiões nos anos 1960 figura Barbie. Por 35 relatórios enviados ao BND sobre o “perigo dos partidos de esquerda” na Bolívia, ele foi remunerado mensalmente com 500 a 1000 marcos alemães, valores transferidos a uma conta em um banco de Londres. Para relatórios particularmente interessantes, Barbie teria cobrado de 100 a 200 marcos alemães – pagos com fundos de impostos federais. Em resumo, com dinheiro do povo alemão.
Barbie, além disso, foi representante legal na Bolívia de uma empresa de armas alemã de propriedade de um ex-membro da Waffen-SS, colaborando, inclusive, para o envio de armamento pesado ao exército boliviano, alimentando golpes. Curiosamente (ou não), a Bolívia foi o país em que a referida corporação obteve seus maiores lucros.

A confortável vida de Barbie/Altmann sofreu um revés em 1971, quando os “caçadores de nazistas” Serge e Beate Klarsfeld descobriram sua verdadeira identidade e lançaram uma campanha para trazê-lo de volta à França. No encalço de Barbie, à época, o jornalista francês, Ladislas de Hoyos, também cumpriu papel importante.

Prisão

As relações de Klaus Altmann com os poderosos da Bolívia serviram para mantê-lo na América do Sul por mais de uma década, depois da denúncia de Serge e Beate.

Nesse período, ele serviu a outro ditador. Mais do que isso: foi decisivo para colocá-lo no poder, atuando como ideólogo da ação. Trata-se de Luis García Meza Tejada, que chegou à presidência em 1980 – naquele que foi chamado de “golpe do narcotráfico”, em razão do envolvimento de traficantes na jogada.

Foi apenas com a queda de Meza, e a volta da democracia ao país, em 1982, sob Hernán Siles Suazo, que a proteção a Barbie restou vulnerável. Em 1983, finalmente foi parar atrás das grades na prisão de San Pedro, em La Paz, sendo extraditado via aeroporto para a Guiana Francesa e, na sequência, para a França, sob o governo de François Miterrand.

No retorno a Lyon, condenação e morte

Há um ditado que diz: Um criminoso sempre volta ao local do crime. Assim se deu, por linhas tortas, em 1983, com Barbie – que já havia sido condenado à morte pelos franceses “à revelia” em duas ocasiões, ambas por crimes de guerra, em 1952 e 1954. As sentenças, todavia, haviam caducado em razão do passar do tempo.

Recluso na prisão de Fort Montluc (hoje, transformada em Memorial), em Lyon, ele foi acusado de crimes contra a humanidade relacionados à deportação das crianças e dos adultos de Izieu, e a deportação da União Geral dos Judeus da França. Controversamente, não foi indiciado pelo aprisionamento e tortura de Jean Moulin. Entre as testemunhas que depuseram contra ele estavam Sabine Zlatin, de 80 anos, fundadora do lar infantil em Izieu, e Léa Feldblum, a cuidadora sobrevivente, então com 69 anos.

O julgamento de Barbie marcou um momento significativo na história francesa, suscitando questões fundamentais sobre a guerra, a resistência e o Holocausto. Embora tenha sido condenado à prisão perpétua em 1987, a maior sentença possível no país desde a abolição da pena de morte em 1981, Klaus Barbie manteve-se fiel às suas convicções nazistas e permaneceu impenitente até o fim.
Ele faleceu em 25 de setembro de 1991, vítima de câncer, enquanto cumpria sentença na França.

A necessidade de enfrentar e punir

Sua vida em La Paz, onde desfrutou de décadas de impunidade, continua a ser um exemplo chocante da fuga da justiça e das conexões políticas que permitiram que criminosos de guerra nazistas encontrassem um novo começo em terras distantes, especialmente na América do Sul.
O caso de Barbie destaca a importância de enfrentar os horrores do passado e garantir que os responsáveis por crimes atrozes sejam levados à justiça, independentemente do tempo que tenha passado – e de quão “alto” eles possam chegar em sua miserável existência.

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