Tudo está plano, daqui até o precipício

O Brasil desceu tanto o nível da discussão que ninguém fala mais do que precisaria ser dito

O momento atual não está bom pra quem trabalha com arte e, por conseguinte, com pensamento, filosofias, ciências em geral, mas para aqueles que não trabalham nessas áreas isso não parece ser importante, não estar nem aí.

Já disseram que o endosso da Presidência ao remédio sem comprovação fez os médicos sérios se arrepiarem. Bem, quem é de humanas se arrepiou todo antes das eleições de 2018. Trinta dias depois quem não estava desesperado estava no Rivotril.

Sabíamos que a eleição de Bolsonaro traria efeitos teratológicos no nível da discussão sobre humanidade, democracia e alteridade existente por aqui. Quem era das ciências sociais sabia, porque já vivíamos na prática uma linha de defeitos disfuncionais criados por paranóias e teorias da conspiração malucas. Nas artes, já tínhamos os artistas mamadores de teta Rouanet, enquanto promoviam o gaysismo em exposições como a Queermuseu. Nas ciências, tínhamos a turma de professores doutrinadores do Marxismo Cultural. Na medicina, os agentes cubanos comunistas infiltrados no SUS.

E lá se foi a oportunidade de melhorar um dispositivo que cria milhares de empregos no setor criativo e, de quebra, gera cultura e saúde para a população. Perdeu-se de vista o fato que 9 entre os 10 maiores registradores de patentes no Brasil são universidades públicas e que basta uma só invenção para uma indústria inteira se formar por aqui. Também sumiram no horizonte os médicos estrangeiros que tiveram a coragem de ir ao Brasil invisível. Ficaram apenas os brasileiros abandonados em rincões onde médico não vai.

Exposição Queermuseu provocou polêmica em 2017. Crédito da foto: divulgação.

Mas isso é pra dizer que defendo a Rouanet, o Mais Médicos e a Universidade Pública? Sim, mas não como se defende um time de futebol, porque esse paradigma de torcida é muito raso para assuntos complexos e também perigoso, pois instala a disputa ao invés do questionamento objetivo  que pode escalonar para o delírio de ver todos como inimigos.    

O que eu queria era poder falar de tudo isso a partir das críticas que tenho a tudo isso, mas nem isso mais é possível.

Queria falar sobre como a Rouanet precisa rever os patrocínios para artista que já é rico. Discutir melhores condições de trabalho para os médicos cubanos. Pensar em como acelerar o encontro da ciência que sai das universidades com a economia para gerar emprego e renda.

Mas não dá. Gastamos o tempo explicando como as leis de incentivo à cultura são seguras e transparentes, como as universidades públicas e gratuitas são os pilares do crescimento econômico, que vacina não transforma em jacaré e que a Terra não é plana.

Parece que, entre ter que explicar que não comemos criancinhas e que não somos agentes infiltrados da KGB, acabamos por esquecer do que afinal tínhamos de falar.

Mas agora é preciso falar mais do que nunca.

No livro, Sobre a Tirania (2017), o escritor e historiador Timothy Snyder fez um compêndio atualizado de lições de vida retiradas das biografias daqueles que viveram a faceta mais dura do nazifascismo tomando conta de seus compatriotas e se atenta ao fato que o desânimo tem consequências políticas muito graves, pois “o poder deseja que seu corpo amoleça na poltrona e que suas emoções se dissipem na tela”.

São tempos de defender o óbvio, enquanto a insensatez insiste em defender o indefensável ao mesmo em que destrói o ambiente para o encontro civilizatório e, ainda pior, destrói o ânimo daqueles que almejam um mundo melhorado. Em Terra plana e de gente rasa, quem tem nível é rei.


Sobre a Tirania, Timothy Snyder. Companhia das Letras, 168 páginas. R$ 28.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

O (des)encontro com Têmis

Têmis gostaria de ir ao encontro de Maria, uma jovem vítima de violência doméstica, mas o Brasil foi o grande responsável pelo desencontro

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima