De louco a doido varrido

Aumento da frota de veículos em Curitiba piora o trânsito na cidade

Não é de hoje – e muito menos por falta de aviso. No gramado da praça, totalmente arrasado, repousa a placa “Não pise na grama”. No banheiro de bar, restaurante e outros locais públicos, temos o apelo “favor puxar a descarga” e, na pia, “favor fechar a torneira”. E, ainda no dito cujo banheiro, outro pedido: “Não bata a porta”. Sem esquecer o “favor não afanar o rolo de papel higiênico”…

A partir daí temos muitos outros avisos/apelos que não dão 100% certo, nem mesmo quando se trata de sinalização do trânsito – nas estradas, garagens, estacionamentos e nas ruas. Conforme estabelece o Código Brasileiro de Trânsito (CTB), a sinalização é um conjunto de sinais de trânsito e dispositivos de segurança colocados nas vias públicas com o objetivo de garantir sua utilização adequada.

O potencial de risco do celular

Uso de celular ao volante. Crédito da foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil.

A propósito do trânsito, há uma cena que se tornou comum. E em plena luz do dia. Na (cada vez mais) movimentada Avenida João Gualberto, no Juvevê, dia desses um cidadão, totalmente abduzido pelo celular, ignora olimpicamente a faixa de pedestre e o semáforo. Para encurtar o caminho, inicia a travessia no meio da quadra. O sinal fecha e um motorista, também desligado, fura o sinal vermelho afundando o pé no acelerador. Por pouco, muito pouco, não atropela o pedestre.

Diante da cena, alguns pedestres recorreram ao velho comentário:

– Foi por um triz…

Outros foram mais longe:

– Circular por Curitiba, a pé ou ao volante, virou uma aventura, coisa de louco.

– De fato. Só que não é mais coisa de louco, mas coisa de doido varrido…

E a tendência é piorar

No mesmo dia, já em casa, uma das testemunhas do episódio voltou no tempo, graças a seus arquivos: dia 19 de maio do ano passado. Matéria de Rodolfo Luis Kowalski, no Bem Paraná, informava que “a frota de veículos voltou a crescer em Curitiba em 2018 e manteve, em 2019, a tendência de alta”.

Segundo informações do Departamento de Trânsito (Detran-PR), a Capital alcançou a marca de 1.418.309 veículos, com a taxa de 0,74 veículos por habitante. E o número representou “um recorde histórico para a cidade, que até 2007 possuía uma frota composta por 967 mil veículos – em 12 anos, portanto, houve um crescimento de 46,7%, crescimento este que só não foi ainda mais expressivo porque o aumento da frota, constante até janeiro de 2015, passou a claudicar diante da situação econômica do país”.

Tempo perdido, um recorde

Ainda dos arquivos: tempos atrás, o jornal Metro abriu manchete: Tempo perdido – Curitibano desperdiçou 83 horas parado no trânsito em 2016.

Pesquisa da empresa holandesa TomTom, fabricante de sistemas de navegação para automóveis, colocava Curitiba em 144.º lugar no ranking de 390 cidades de 48 países – entre as brasileiras, a capital paranaense aparecia na 9.ª colocação. E na matéria, assinada por Rafael Neves, temos que o motorista na capital passa, em média, 22 minutos por dia parado no congestionamento. Nosso trânsito piorou 2% no ano passado.

Aí, alguém recorreu a um livro: Trânsito Louco, de Marcos Prado, lançado em 1973. Entre as razões do trânsito que já era maluco naquela época, temos do arquiteto, ex-IPPUC e ex-Detran, que, em 1971, o desafio curitibano era “implantar um plano de trânsito numa cidade com vícios urbanos impermeáveis a qualquer modificação em sua estrutura viária tradicional”.

Na orelha do livro, Jaime Lerner não deixava por menos: o trânsito era “assunto que mais preocupa do que entusiasma, embora num país onde os automóveis crescem em progressão geométrica e isso acaba por atingir a todos, indistintamente”.

Sede do IPPUC, órgão responsável pelo planejamento de Curitiba. Crédito da Foto: Daniel Castellani/SMCS.

Neuróticos ao volante

Implantado na década de 1970, o exame psicotécnico para obtenção de carteira de habilitação apontou, nas primeiras levas, que só em Curitiba “quase 10% dos candidatos mostraram ser neuróticos”.

E, conforme Marcos Prado, Curitiba, como todas as cidades “em crescimento espontâneo”, não possui uma infraestrutura para suportar o impacto da era industrial, “cujo efeito mais direto é o aumento progressivo da sua frota de veículos”.

Proporcionalmente à sua população, “a cidade apresentava uma das menores áreas centrais – aproximadamente 0,5 km quadrados -, onde há excepcional concentração de atividades comerciais, bancárias, culturais e recreativas”.

Pior que as velhas pragas

Ainda do livro:

– Os acidentes são hoje o nosso maior mal social. É um verdadeiro massacre que substitui as pragas da idade média, no Século XX.

– O liberalismo econômico, iniciado no final do século XVIII, faz com que escape do controle da comunidade ou da municipalidade a vida urbana, cuja instabilidade é marcante. A cidade passa a ser instrumento de lucro. (…) As pessoas servem-se da cidade. Esta deixa de ser realidade coletiva para ser realidade espacial apenas. A organização da cidade começa a depender da via férrea e das vias de acesso. Perde a autonomia, desaba sua estrutura, cria-se um tecido urbano desordenado.

– Durante o ano de 1970, em Curitiba, mais de 100 pessoas não voltaram para casa, vítimas de acidentes de trânsito. Em 1971, 66 morreram nas suas ruas e 1.400 em todo o Paraná. O aumento do número de veículos é vertiginoso: São Paulo atinge quase 1.000.000 de veículos e Curitiba aumentou sua frota 200% em 10 anos. Este formidável aumento da frota, a falta de preparo da população para a entrada na era do automóvel, a falta de condições das ruas, a inexistência de uma consciência dos problemas criados pelo automóvel por parte das autoridades, levou às condições que hoje prevalecem nas grandes cidades.

– O tráfego, mais que um problema à espera de solução, é uma situação social que requer uma política rigorosa e paciente, insiste Prado.

Falando do volume mensal de carros novos emplacados, cita que em 1973 seria superior a 2.000 veículos, um crescimento quase geométrico e que, pelas facilidades de compra, “estamos nos aproximando do atendimento do desejo de cada família ter seu próprio carro”.

Realidade kafkiana

O ex-governador do Paraná e ex-prefeito de Curitiba Jaime Lerner. Crédito da foto: Reprodução.

“É necessário entender o tráfego como a presença de veículo na cidade, em movimento e parado. Vemos grande parte da inteligência sendo dedicada apenas à engenharia de fluxo de tráfego – com medidas de volume, desenho de ruas e intersecções –, mas raramente ouvimos alguém indagar porque os veículos se movem, ou se o tráfego poderia ser eliminado ou dirigido a outras direções pela manipulação das causas dos movimentos”.

No final, Jaime Lerner diz que abordou os problemas mais importantes e que as críticas, apesar de duras, refletem parcialmente a realidade, que chega a ser kafkiana.

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