Curitiba é afro!

Kandiero: mostrando a Curitiba negra. Foto: Leonardo Tulio Rodrigues
Grupo resgata contribuição afro apagada por pensadores paranaenses

Famosa por abrigar comunidades de imigrantes europeus desde sua criação, a cidade de Curitiba guarda em sua história a contribuição de pessoas que foram esquecidas pelo tempo. Muitas das importantes contribuições das populações afro-brasileiras para a cidade são visíveis por toda parte, mas o legado de seus idealizadores é difundido de maneira controversa ou até mesmo apagado da história.

Quem explica isso é o escritor e membro do Centro de Letras do Paraná Adegmar Silva (Kandiero) e a pesquisadora de história e cultura afro-paranaense Melissa Reinehr. Os dois também são os guias e idealizadores do Projeto Linha Preta Curitiba, uma iniciativa sem retorno financeiro que é responsável por combater o que eles apontam ser uma cultura de apagamento e embranquecimento da história negra na capital. Além disso, Kandiero e Melissa integram o Centro Cultural Humaita, um Centro de Estudo e Pesquisa da Arte e Cultura Afro-brasileira em Curitiba.

“O Centro Cultural Humaitá foi criado para apoiar o ensino da história e da cultura afro nas escolas e, desde então, vem realizando diversas ações para cumprir a sua missão de valorizar e dar visibilidade à presença Negra e à cultura afro no Paraná”, destacam os pesquisadores.

Em uma parceria de longa data, eles investigaram a história de populações afro-brasileiras em território paranaense desde 2006. Na visão de ambos, o poder público municipal tem grande parcela de culpa quanto ao apagamento da história e cultura negra e na propagação de um pensamento eugenista durante os séculos 19 e 20.

Discurso paranista e a Eugenia

O Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2021 aponta que cerca de 24% da população curitibana se autodeclara negra. A cidade é considerada hoje a capital mais negra do sul do país. No entanto, esse número já foi muito maior. Segundo informações da Assessoria de Direitos Humanos – Política de Promoção da Igualdade Étnico-Racial de Curitiba, a cidade registrou a presença de indígenas, africanos, europeus, orientais e povos ciganos ao longo de toda a sua história. Entre aqueles que colaboraram com o processo de formação do município, as populações negras se destacam.

Dados levantados pela doutora em Antropologia Miriam Hartung mostram que no estado do Paraná, as populações negras estiveram presentes de forma significativa nas regiões do litoral ou na região do Planalto nos últimos séculos. Em 1767, esses habitantes representavam 50% da população de Curitiba e, no final do século XVIII, o percentual era de 47%. Os dados abarcam negros escravizados e livres.

O legado desses afro-brasileiros vem sendo varrido para debaixo do tapete com a colaboração de importantes intelectuais que atuaram ou passaram pelo Paraná ao longo dos últimos dois séculos. O primeiro a tentar formalizar a história da região que hoje é a cidade de Curitiba foi Augustin Saint-Hilaire, botânico, naturalista e viajante francês que estava em território brasileiro entre 1816 e 1822. Ele foi o responsável por iniciar a narrativa de que Curitiba era povoada majoritariamente por brancos, descartando grande parte das contribuições vindas de populações negras locais.

Um século mais tarde, a história curitibana passou por novas reconstituições que cristalizaram o processo de apagamento do legado de comunidades e trabalhadores afrodescendentes no município. Nascido em 1874, Romário Martins é considerado um importante historiador, jornalista e político paranaense, ocupando diversos cargos públicos no início do século XX. Tido como um dos grandes intelectuais da história do Estado, Martins foi o principal representante do Paranismo, movimento de cunho artístico e cultural que também colaborou para o apagamento da história de negros e negras em território paranaense.

Melissa e Kandiero afirmam que o trabalho desenvolvido por Martins e demais integrantes do Movimento Paranista entre as décadas de 1920 e 1930 é carregado de “ideologia do embranquecimento”. Segundo o especialista em artes hibridas André Ribeiro, o discurso Paranista faz referência direta à Eugenia, que defende a ideia de superioridade de raças em detrimento de outras. No passado, o discurso eugenista serviu como base para a filosofia de pensamento do Nazifascismo, gerando cerca de 6 milhões de mortes durante o Holocausto Alemão.

Em citação extraída do Manifesto Paranista, Martins utiliza conceitos biológicos ligados ao eugenismo, como “typo ideal” do paranaense do futuro e “belleza physica e moral”. “Muitos intelectuais respeitados da nossa cidade continuam repetindo a mesma narrativa. Qualquer pessoa que queira manter esse discurso vivo encontra fontes em vários museus e bibliotecas da cidade. Aqueles que querem escapar disso e buscar autores não endossados por essa intelectualidade paranista são facilmente desconsiderados”, aponta Melissa.

Com o uso dessa narrativa, o progresso da sociedade curitibana passou a ser creditada exclusivamente à burguesia local e a grupos de imigrantes europeus, que chegaram ao território após 1870. Desde 2018, o projeto Linha Preta tenta consertar isso, exaltando a cultura afro presente na capital e combatendo a cultura do apagamento e do embranquecimento da história do município.

Populações afro têm legado fundamental

Segundo informações da Assessoria de Direitos Humanos – Política de Promoção da Igualdade Étnico-Racial de Curitiba, a cidade registrou a presença de indígenas, africanos, europeus, orientais e povos ciganos ao longo de toda a sua história. Entre aqueles que colaboraram com o processo de formação do município, as populações afro-brasileiras se destacam. Mesmo assim, ainda é difícil ter acesso a essas e tantas outras informações sobre esse legado.

Na obra “A Presença do Negro na Formação de Curitiba: Diálogos na Comunidade Escolar”, publicada pelo Governo do Estado do Paraná, o autor Francisco Cardozo de Oliveira afirma que os negros não aparecem na história paranaense, mesmo tendo papel importante na sua história e construção. “A erva-mate ocupou um papel relevante tanto na história quanto na economia do Estado. Neste cenário, o negro tem papel de destaque, além dos trabalhadores braçais que eram muitos, o projeto da estrada de ferro foi elaborado e executado pelos engenheiros André e Antônio Rebouças que eram negros. A partir desse processo, as famílias brancas ostentavam suas colheitas em agradecimento a Deus, e a força do trabalho negro ficava oculta”, escreve Cardozo.

Além do apagamento das contribuições de cidadãos afro-brasileiros para a sociedade, pesquisadores também notam um processo de embranquecimento de importante figuras negras, além da exaltação de personagens controversos, como é o caso do sacerdote católico Monsenhor Celso. O religioso, apontado como um escravocrata, é representado publicamente em um busto exposto na Igreja do Rosário dos Pretos, no Largo da Ordem, região central de Curitiba.

Melissa Reinehr classifica a postura adotada pelo poder público regional ao longo das décadas como um fortalecimento ao epistemicídio da cultura negra, ou seja, o apagamento da cultura e da memória desses povos em detrimento de uma cultura soberana. Entre os aspectos que fortalecem essa interpretação, está a vasta produção histórica e cultural endossada pelo Governo Municipal que ignora a contribuição das populações negras para o município, como é o caso das obras paranistas.

Buscando reparar os erros cometidos ao longo dos últimos séculos, o Conselho Municipal de Política Étnico-Racial realiza um importante trabalho com o Plano Municipal de Promoção de Igualdade Étnico-Racial (PLAMUPIR). Elaborado com base na agenda 2030 e no programa da ONU para a Década dos afrodescendentes, o Plano representa uma importante evolução nas políticas de igualdade racial em Curitiba nos últimos anos.

Abordando temas como justiça, reconhecimento e enfrentamento a discriminações, a iniciativa encabeçada pela Vice-presidente do Conselho Municipal de Política Étnico Racial Marli Teixeira Leite vem atraindo olhares da população e do próprio poder público. Através de uma consulta pública realizada em ambiente online, a população da cidade pôde votar nos temas de maior relevância quanto a politicas étnico-raciais e deixar sugestões.

Segundo a Assessoria de Direitos Humanos – Política de Promoção da Igualdade Étnico-racial, a consulta obteve expressiva participação da população de Curitiba, servidores municipais, universitários e moradores da região metropolitana que passam diariamente pela capital.

De acordo com Marli Teixeira, que também é Assessora da Promoção da Igualdade Étnico-Racial de Curitiba, o Plano Municipal tem como objetivos efetivar a política de promoção de igualdade étnico-racial, contribuir para a garantia de acesso aos direitos fundamentais da população negra e combater o racismo. Além do Plano Municipal, outras iniciativas do poder público local buscam reparar os erros do passado.

Um exemplo disso é a Caravana Étnico-Cultural, iniciativa criada pela Prefeitura de Curitiba voltada a reforçar ações afirmativas para as populações negra, indígena e cigana na capital. Passando por todas as dez regionais do município, a caravana realiza apresentações e oficinas culturais, exposição de produtos e feira de empreendedorismo.

Ainda que valioso, o trabalho desenvolvido por Marli e sua equipe não dá conta de reparar erros históricos tão grosseiros em tão pouco tempo. As consequências do apagamento do legado afro-brasileiro e a propagação de um pensamento eugenista demandam esforços cada vez maiores e mais conjuntos para que erros sejam reparados e indivíduos sejam, enfim, humanizados.

Orientação: Larissa Drabeski (professora e jornalista)

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