Maestra?

Quando pensamos nesses dois nichos da música – a composição e a regência – rapidamente associamos essas profissões a homens, velhos, brancos, europeus

Regente, maestra ou maestrina são as opções, em português, para que eu responda qual é a minha profissão. Não importa qual delas eu use, depois de contar a alguém o que faço, vem o espanto.

Eu me chamo Ingrid Stein Fernández, tenho 25 anos, sou latina, brasileira, LGBTQ+ e maestrina. “Ensaios” pretende dividir de maneira leve um pouco do ambiente da música de concerto. Aqui contarei um pouco sobre o que há por trás de um concerto, de uma obra e da profissão – maestra. Também falarei sobre produções locais de música de concerto, sua difusão e contemporaneidade. 

Como cheguei aqui?

Assim como vários músicos que conheço, eu aprendi um instrumento – o violão – desde criança. Passei a adolescência estudando música em paralelo ao ensino regular, e quando chegou a hora de escolher uma profissão, escolhi ser regente. Eu tinha 17 anos quando entrei no bacharelado em composição e regência da Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP). Na minha turma havia 19 pessoas, 3 mulheres e 16 homens, e eu era uma das alunas mais jovens.

Quando pensamos nesses dois nichos da música –  a composição e a regência – rapidamente associamos essas profissões a homens, velhos, brancos, europeus, que são conhecidos por um temperamento atípico, enérgico e enfático. Quando eu me olho no espelho, vejo uma mulher, jovem, miúda, com tatuagens à mostra e um piercing no rosto. No corte de cabelo e em como me visto carrego o estereótipo de sapatão. Traje de gala algum me transforma no que as pessoas esperam de um regente. Jamais serei um maestro, mas eu posso ocupar o lugar de maestra.

Já me acostumei com o sobressalto da plateia ao me ver subindo no palco. Mais de uma vez, ao fim de um concerto, alguém veio me contar que era a primeira vez que via uma mulher à frente de uma orquestra. Quando revelo minha idade, a surpresa é ainda maior. Como é que pode que uma “menina” consiga fazer o que eu faço? O que digo é que a regência é uma profissão como outra qualquer.

Há um grande misticismo ao redor da regência. A maioria das pessoas não sabe muito bem o que é que a gente faz. Parece mágica alguém corporificar os sons e colocar a música em pé, fazer a orquestra tocar. Mas o que é preciso saber fazer para que a mágica aconteça, é um mistério. É um mistério ainda maior que eu, com todas aquelas características que você leu acima, coloque toda aquela gente para tocar.

Por muito tempo eu me perguntei como é que eu faria para compensar o não ser. Não dá para nascer de novo. Eu queria ser regente agora, não quando fosse estudar na Europa, não se eu fosse homem, não quando fosse velha. E mesmo que ao meu redor houvessem narrativas semelhantes, parecia que ninguém era tão “azarada” como eu. Felizmente, minha melhor amiga me ensinou que a vontade é o melhor argumento.

Ninguém precisa ser nenhuma daquelas coisas que se espera para ser maestrina. É preciso ter vontade de ser e saber fazer o trabalho, e isso eu aprendi bem.

Como conduzir um concerto?

Reger é como cozinhar. Consiste em três etapas: o mise en place (preparação individual), o serviço (ensaios) e a refeição (o concerto). A partitura é uma receita. Nela o compositor colocou diversos elementos, em linguagem musical, não só sobre as notas, mas sobre como tocá-las e com qual intenção – você pode fazer vários pratos com abóbora, cada receita vai te mostrar um caminho, a partitura faz isso com os sons.

Na primeira etapa do trabalho leio e releio a receita. Depois de já estar familiarizada, depois de conhecer bem os ingredientes musicais, depois de saborear cada um deles, internalizo os passos necessários para que possa misturá-los e criar gestos.

Três são as informações básicas para começar: velocidade, volume e instrumentação. Se no começo de uma música leio “largo e forte”, e vejo notas escritas para os instrumentos de sopro, sei que meu gesto precisa reafirmar aquilo que está escrito. Largo indica lentidão, forte indica volume alto, então o gesto precisa ser grande e lento, mas com precisão o suficiente para que todos soprem seus instrumentos juntos. Reger é colocar no corpo a intenção de tempo, volume e direção de tudo (ou quase tudo) que acontece na música. Essas intenções nascem da interpretação da partitura. Posso fazer a receita simplesmente como está escrita, mas a arte mora em temperar do próprio jeito.

Na segunda etapa levo essas informações aos músicos. Você pode estar se perguntando: mas os músicos não recebem a partitura com tudo isso? A resposta é: não, eles recebem apenas a partitura dos próprios instrumentos. Eu faço os ensaios a fim de afinar as notas, os humores, os tempos, para que todos possam realizar a performance sob as orientações da minha interpretação da partitura. 

O ensaio é o momento mais importante, nele cozinhamos o prato. Gestos que preparei podem não funcionar e então mudarei. Trechos difíceis podem demandar diversas repetições até que todos consigam tocar juntos. Diversos podem ser os percalços. Às vezes na cozinha alguém corta o dedo, às vezes no ensaio uma corda arrebenta. Para preparar a mesma música, um tem que tocar do início ao fim, como se mexesse constantemente uma panela; outro pode descansar, como se deixasse um pão fermentar. No ensaio arrumamos tudo para que, no concerto, todos possam saborear o som.

O concerto – a última etapa – é o que chega ao público. Distribuímos os pratos, divulgamos a música. Quando os ensaios renderam bem, nós nos divertimos como se comêssemos juntos. Tocamos conforme o combinado, mas conduzo para ter certeza de que ninguém vai se perder. Tudo isso sem deixar de performar. Regentes são artistas, é preciso haver espaço para eu me soltar. Quando os ensaios são tempestuosos, chegamos no concerto mais nervosos, mas isso não nos impede de fruir.

No palco oferecemos o melhor do nosso trabalho, que também é o melhor de comer, a comunhão. Em média, 60 pessoas precisam se dedicar a cada apresentação. Fazemos arte e levamos música para quem nos deseja ouvir. E para isso, nem quem toca, nem quem rege, nem quem ouve, precisa ser de algum jeito específico. Só precisa ter vontade de apreciar música de concerto e de estar no lugar que deseja ocupar.

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