“Saidinha” não é farra nem fuga, é uma chance de reviver um ser humano

A saída temporária serve para dar uma mínima chance de reverter a morte social que é o presídio

Foi aprovado no Senado Federal o fim da saída temporária, conhecida no Paraná entre pessoas privadas de liberdade e seus familiares como “saída de portaria”. No Brasil, de modo geral, como “saidinha”. Comum, também, a confusão da saída temporária com o “indulto de natal”, mas em nada se relaciona com ele.

Não vamos usar aqui o termo mais pejorativo, “saidinha”; nem o termo mais ligado ao vocabulário das pessoas privadas de liberdade, “portaria”; e tampouco o termo incorreto, “indulto”: vamos passar a tratar, nessa coluna, pelo seu termo mais técnico de “saída temporária”.
Grosso modo, trata-se da saída, por um período, de presos em regime semiaberto para o meio externo, ou seja, para fora de um estabelecimento prisional. São 35 dias por ano, dividida em períodos esparsos (não apenas no Natal). Decorre da lógica do nosso sistema progressivo: os condenados criminalmente iniciam cumprindo pena de forma mais restritiva e, aos poucos, vão ganhando a liberdade, após análise de seu comportamento combinado com o tempo de cumprimento de pena.

O fim da saída temporária impõe um retrocesso. Explico.
Dois são os pilares dos críticos da saída temporária: é meio de fuga; e fomenta a impunidade.

O argumento da fuga
O argumento da fuga não se sustenta considerando que a saída temporária é exclusiva para presos em regime semiaberto, regime esse cuja vigilância é mínima. Trocando em miúdos: se a pessoa privada de liberdade em regime semiaberto desejar fugir, não é o fim da saída temporária que irá impedi-la. E a imensa maioria não foge.

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O regime semiaberto é cumprido em colônias penais agroindustriais, trabalhando durante o dia em estabelecimentos sem muros e se recolhendo a alojamentos durante a noite. O contingente de policiais penais é reduzido se comparado a estabelecimentos de regime fechado.

Basta “pegar o verde” e sair, ou seja, sair atravessando o mato que cerca a unidade. “Pegar o verde” é a gíria das pessoas privadas de liberdade para descrever a fuga da Colônia Penal Agroindustrial de Piraquara.

As pessoas privadas de liberdade, minoritárias, que desejam empreender fuga, não esperam saída temporária, pois podem realizar esse desejo a qualquer momento.

Digo minoritárias porque é possível fazer uma análise dos números, ainda que sem rigor estatístico (considerando a falta de compilação de dados uniformes entre todas as unidades da federação, mas isso é assunto para outra coluna): o Brasil tem quase 127 mil presos em regime semiaberto, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), e o total de 773 mil presos. Repito: o fim da saída temporária irá atingir apenas os 127 mil presos nesse regime menos gravoso, ou seja, 16%. Os demais, presos provisórios e em regime fechado em nada serão afetados. Não temos informação que indicaria quantas dessas fugas decorrem de não retorno da saída temporária e quantas decorrem de fuga do próprio estabelecimento penal (“pegar o verde”), em especial no Estado do Paraná. Dados da SAP-SP indicam que a evasão no semiaberto é de 5%. Em que pese a falta de informação, é possível afirmar que o universo é diminuto, embota a abolição do direito vá atingir 100% da população prisional.

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Mas as fugas ocorrem? Claro que sim. Inclusive durante a saída temporária. Não sejamos ingênuos. O ponto é que o fim da saída temporária não irá aumentar ou diminuir o índice de evasão – que já é muito inferior ao que o senso comum constrói – pela própria natureza do regime semiaberto. Frise-se: já não há, em hipótese alguma, saída temporária para presos de regime fechado e estes em nada serão afetados com o fim ou manutenção da saída temporária.

O argumento da impunidade
Em “Tropa de Elite”, na sala de aula de uma faculdade de Direito, Diogo Fraga demonstra o aumento exponencial da população carcerária no Brasil. Ao final, faz a piada: se continuar assim, em 50 anos darei essa aula na prisão, já que chegaremos a 100%.

O filme é antigo e o debate sobre impunidade é cansativo e repetitivo. Tanto se fala sobre “impunidade no Brasil” e tanto se desconstrói esta afirmação indicando alguns fatos evidentes: o aumento da população carcerária no brasil em mais de 400% em menos de 20 anos; a seletividade do sistema prisional que encarcera negros, jovens, periféricos e de baixa escolaridade; o encarceramento e a consequente morte social favorecendo reincidência e ingresso em organizações de presos; a falta de correlação entre aumento das prisões e taxa de criminalidade.

Não fiquemos de rodeio: a questão não é científica, acadêmica ou lógica, mas exclusivamente política. Não vamos nos esforçar para ser o Fraga e refutar que somos o país da impunidade, como afirmam, e vamos para o que interessa: esse discurso é político e está do lado errado.

Cadeia Pública de Paranavaí. Foto: Reprodução/Relatório DPE-PR

Vamos adiante, essa política não se resume a mera política eleitoral representativa, em que o parlamentar defende algo para agradar sua base. É uma política fundada em uma estrutura que define um inimigo a ser combatido, como uma simplificação tosca da realidade: problemas construídos por questões complexas – ligadas indiscutivelmente por desigualdades – e resolvidos por medidas simples, porém inócuas e caras.

Aí se defende que precisamos punir mais, assim como precisamos ter menos direitos trabalhistas, menos programas sociais, menos ações afirmativas, mais liberdade econômica. No fundo, escamoteia-se que o que precisamos resolver é: as desigualdades. Coloca-se Estado quando é para reprimir e retira-se o Estado quando é para prover. Em resumo, é mais fácil combater, excluir, apagar o pobre do que resolver o problema da desigualdade.

É difícil nadar contra essa maré e não nos resta muito a não ser falar, talvez da mesma forma que ouvimos o que não queremos. O método indutivo é sempre empregado: pega-se o exemplo escatológico para se aplicar ao todo. “Fulano não retornou da saidinha e matou cinco”. Esquecem da maioria.

Aqui vou fazer o mesmo, mas às avessas. Em 2015, como Defensor Público do Estado, atendi João em sua primeira saída temporária. Aquele era seu primeiro atendimento jurídico. Foi condenado sem conversar com defensor técnico. Sua condenação era do Mato Grosso, afirmou que nunca conseguiu contato com sua família desde que foi preso, em 2010. Sua prisão ocorreu no Paraná porque trabalhava como caminhoneiro e foi parado em um posto da Policia Rodoviária Federal. O “mike papa” cantou (Mandado de Prisão em alfabeto fonético). Afirmou que nunca recebeu visita e nunca recebeu “sacola” (que é o SEDEX que familiares enviam com produtos autorizados a pessoas privadas de liberdade). Falou seu endereço aproximado. Através do Google Street View localizamos um estabelecimento comercial com um telefone no muro. Do outro lado, desconfiança. Após algum tempo, João foi reconhecido e finalmente conseguimos contato com seus familiares. Aquela foi a pavimentação para seu acolhimento familiar quando progrediu ao regime aberto. Nunca mais tive notícias de João, o que é um ótimo sinal.

A saída temporária é para isso: dar a mínima chance para que uma morte social seja revertida. Os 35 dias por ano estão longe de ser a farra da impunidade ou o corredor para fugas.

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