Visibilidade trans e travestis: a árdua luta pelo reconhecimento e por igualdade

Tolerar o atual quadro de extermínio de pessoas trans no Brasil é pactuar com a barbárie

Karollyne Nascimento 
Antonio Vitor Barbosa de Almeida
Diego Paolo Barausse

29 de janeiro é o dia nacional de celebração da visibilidade trans. No Brasil, a data escolhida tem relação com o lançamento da campanha nacional “Travesti e Respeito”, ocorrida na mesma data em janeiro de 2004, a partir da mobilização social de ativistas trans, travestis e apoiadores. 

No âmbito internacional, o dia escolhido foi 31 de março e idealizada pela ativista trans estadunidense Rachel Crandall-Crocker, no ano de 2009, como resposta ao apagamento que as pessoas transgêneros sofrem pela sociedade e pela própria comunidade LGBTI+.

Para pessoas que não são trans, as chamadas pessoas cisgêneras, ou que não convivem com pessoas trans no seu dia a dia, pode parecer estranho pensar nas chamadas questões de gênero, nos seus termos e nas suas distinções. Outras podem se perguntar o porquê de um dia destinado a visibilizar a vida de pessoas trans e travestis?

Nesta semana, pensando em todas essas indagações que podem gerar dúvidas ao(à) leitor(a), pretendemos refletir a respeito desses significados, disseminar e desmistificar o termo gênero, bem como dar visibilidade à vida de pessoas trans e de travestis que lutam pelo direito de ser quem são. 

É importante, então, apresentar os significados das expressões sexo, gênero, identidade de gênero e orientação sexual de modo a perceber a existência de pessoas e grupos sociais historicamente marginalizados e que enfrentam preconceitos, discriminações e violências todos os dias. Apesar de tantos desafios, as pessoas trans e as travestis têm apenas um desejo, o de viver com dignidade e respeito.

O termo sexo é definido pela biologia e por características anatômicas, genitálias, glândulas e cromossomos. Assim, com o nascimento, as pessoas são designadas como homens e mulheres e pessoas intersexos. O gênero, todavia, é um conceito mais abrangente e vai além de definições biológicas, pois as pessoas se desenvolvem e são atravessadas por múltiplas experiências individuais, familiares e sociais decorrentes de um convívio diário com outras pessoas. O termo gênero, portanto, é uma construção social e cultural na vida de homens e mulheres. É possível notar, então, que o gênero masculino ou feminino decorre da autopercepção das pessoas e das diversas experiências durante as suas existências.  

Nesse contexto, a identidade de gênero diz respeito às vivências internas e individuais que cada pessoa possui em relação ao gênero com o qual se identifica. Pessoas travestis e transexuais ou, simplesmente, trans são aquelas que no decorrer de suas experiências não se identificam com o sexo que lhes foi atribuído ao nascer. Já as pessoas que se identificam com o sexo que lhe foi atribuído ao nascimento e no decorrer das suas experiências são chamadas de cisgêneras.

Aqui, precisamos registrar e reconhecer que as travestis são pessoas que vivenciam a construção de gênero feminino, em contraponto ao sexo que lhe foi designado ao nascimento. Por isso, o correto é se referir à travesti e não “o” travesti. Ela é uma identidade de gênero historicamente construída na América Latina e surge antes mesmo do termo transexual. Sempre foram também marginalizadas e tradicionalmente associadas à prostituição. Contudo, nem todas são profissionais do sexo. 

Já a orientação sexual diz respeito à atração afetiva, sexual e amorosa manifestada por uma pessoa frente a outra. As pessoas podem manter relações heterossexuais (alguém que se relaciona com outrem do gênero oposto), relações homossexuais (alguém que deseja se relacionar com pessoas do mesmo gênero) ou relações bissexuais (alguém que deseja se relacionar com os dois gêneros).  

Historicamente, o espaço reservado às mulheres trans, aos homens trans e às travestis sempre foi o da extrema exclusão e apagamento, a negação de acesso a direitos básicos e o não reconhecimento da identidade de gênero. Embora existam e sempre tenham existido em nossas sociedades, as pessoas transgênero são frequentemente alvo de preconceito, discriminações e violência.

O Brasil, há 15 anos consecutivos, é o país que mais mata mulheres trans e travestis em todo o mundo, de acordo com os dados levantados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA. A socióloga brasileira Berenice Bento, em suas reflexões, já sustentou a existência de uma política disseminada no país, intencional e sistemática de eliminação da população trans, motivada pelo ódio e nojo e a designou como transfeminicídio. A transfeminista Maria Clara Araújo, nas suas pesquisas, diz que o Brasil é um país comprometido com o genocídio trans. 

Para se ter uma ideia da violência, no ano de 2023, 145 pessoas trans foram assassinadas no país, o que equivale a 2 assassinatos a cada 5 dias, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA. Desse total, 136 das mortes foram de mulheres trans e travestis e 9 mortes foram de homens trans e pessoas transmasculinas. A maioria das vítimas possuía entre 18 e 29 anos, mas, infelizmente, uma vítima fatal possuía apenas 13 anos de idade. Com base nesse quadro de assassinatos, constatou-se que o padrão da expectativa de vida de pessoas trans no Brasil é de 35 anos, enquanto a das demais pessoas cisgêneras é de 74,9 anos.

O Estado do Paraná, no ano passado, foi o 4º estado com maior número de assassinato de pessoas trans e, hoje, é o 7º estado com mais número de mortes entre os anos de 2017 e 2023.

Em 2023, pela primeira vez na história do Brasil, a Câmara dos Deputados foi composta por 02 pessoas que se identificam como trans e travestis, as Deputadas Erika Hilton, do Estado de São Paulo, e Duda Salabert, do Estado de Minas Gerais. Nesse mesmo ano, paradoxalmente, inúmeras casas legislativas espalhadas por todo país buscaram disseminar propostas de leis antitrans.

De acordo com os dados divulgados em alguns meios de comunicação e também publicados pela ANTRA, existem mais de 300 projetos de lei em desfavor da comunidade trans e travestis que pretendem implementar a transfobia sob diversas perspectivas. Alguns intentam proibir o uso da linguagem neutra em escolas e na administração pública, outros buscam impor o sexo biológico como único critério de determinação de gênero em competições esportivas. Existem projetos de lei que focam na proibição de instalação de banheiros unissex em estabelecimentos públicos e privados. Independentemente da perspectiva, todas essas propostas legislativas acabam por restringir e criminalizar as existências de identidades plurais.

O quadro de extrema violência contra pessoas trans, incluindo adolescentes, é legitimado pelo contexto social brasileiro, historicamente forjado na linguagem da violência (escravidão), misoginia e desigualdades socioeconômicas. Ainda, soma-se à nossa atual quadra histórica uma ascensão de verdadeiras cruzadas antigênero por parte dos setores mais extremistas da sociedade. 

Discursos espalhados nos meios de comunicação como o da “doutrinação ideológica de gênero” nas escolas, realizações de cirurgias de “mudanças de sexo em crianças”, “perigo de compartilhamento de banheiros com pessoas trans”, dentre outros, endossam o pânico moral insuflado por setores mais conservadores (ignorantes ou não) da sociedade em detrimento de pessoas trans, o que está inegavelmente ligado às altas taxas de violência contra essas mesmas pessoas.

Tais mitos – como o próprio nome diz – são construções fantasiosas e desonestas disseminadas por setores fundamentalistas da sociedade que, longe de qualificar o debate público, pretendem apenas criar confusão, medo e histeria. 

É preciso dizer que não existe no Brasil protocolos que autorizam cirurgia de redesignação sexual para pessoas menores de 18 anos. Não há, ainda, qualquer dado científico e/ou comprovado de que o uso do banheiro por pessoas trans conforme sua identidade de gênero represente risco às demais pessoas, especialmente às mulheres, cujos banheiros são separados por cabines. Dados estatísticos, inclusive, demonstram exatamente o contrário, uma vez que os autores de violência sexual contra as mulheres são, essencialmente, pessoas próximas e conhecidas das vítimas. E, por fim, não existe qualquer plano de “conversão pedagógica” de crianças e adolescentes nas escolas brasileiras, tais como kits gays ou similares.

Não bastasse o avanço de desinformações – aqui brevemente já refutadas -, as pessoas trans enfrentam também resistência de correntes teóricas de feminismos antitrans que insistem em negar a feminilidade e masculinidade de corpos transgêneros, perpetuando, sob um pretenso refinamento teórico, visões transfóbicas.

Todo esse caldeirão cultural no Brasil está por trás da violência e violações de direitos das pessoas trans. 

Assim, infelizmente, as datas alusivas à visibilidade trans no Brasil estão marcadas pela exclusão socioeconômica a que essas pessoas estão submetidas. E você, prezado(a) leitor(a), pode estar ainda se perguntando, mas porque no dia da visibilidade trans são apenas destacados os dados sobre a violência, as mortes, a baixa expectativa de vida e a opressão que as pessoas trans e as travestis são submetidas no país? ou, ainda, não existem notícias positivas em benefício das pessoas trans?

Na realidade, esses dados precisam ser apresentados porque denunciam a falta de políticas públicas na área da educação, saúde, inserção no mercado de trabalho e renda e denunciam também uma política que consente com a morte de pessoas trans e travestis. É possível observar que, no Brasil, as pessoas trans e as travestis vivem à margem da sociedade e são vítimas de estigmas que as ligam à marginalidade, à prostituição, ao consumo de drogas e à promiscuidade sexual.

A Constituição da República, ao simbolizar a repactuação democrática no País em 1988, vedou expressamente qualquer forma de discriminação entre as pessoas e não se pode falar em democracia quando uma parcela significativa da população brasileira é sistematicamente assassinada e excluída, como acontece com as mulheres trans, homens trans e as travestis. 

Os direitos humanos são um marco civilizatório em que todas as pessoas possuem igual dignidade sem distinção de raça/etnia, cor, gênero e procedência. Tolerar esse quadro de extermínio de pessoas trans é pactuar com a barbárie. 

Não toleraremos!

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